Um bom tempo atrás ouvi uma piada que não me lembro (quando alguém começa assim, nota-se que essa pessoa é uma péssima contadora de piadas, não?). Mas o cerne da piada – deve ter sido piada de mineiro – se desenvolvia da seguinte maneira: uma pessoa perguntava à outra “Pó pô pó?” ao qual a outra respondia “Pó pô!” Como já estabeleci que sou um péssimo contador de piadas, e já que também nem contei toda a piada, vou quebrar a única regra inviolável ao se contar uma piada – vou explicá-la: “Pó pô pó?” nesse caso, é uma pergunta no português coloquial de algumas regiões no Brasil, que significa “Pode por o pó (café)?” ao qual a outra pessoa responde “Pode por”.
Agora que já estropiei a coitada da piada, vamos explicar o que, hipoteticamente, seria a graça da mesma – cinco sílabas escritas com as mesmas letras (“p” e “o”) significam três coisas diferentes: 1) um verbo de condição (pode), 2) um verbo de “colocar” e 3) um substantivo para “café”. A piada faz um jogo de palavras, principalmente, em termos linguísticos, com a semântica da palavra “pó”. (Aliás, quando digo “palavra pó”, não quero dizer a palavra que aparece no dicionário Houaiss, mas a palavra coloquial que pode significar “poder” ou “café”).
Jogos de palavra são comuns em todas as línguas, e até temos alguns no hebraico bíblico. Por exemplo, em Jr 1.11, temos o seguinte texto (ARA): “Veio ainda a palavra do SENHOR, dizendo: Que vês tu, Jeremias? Respondi: vejo uma vara de amendoeira. Disse-me o SENHOR: Viste bem, porque eu velo sobre a minha palavra para a cumprir.” … Quê??? Em hebraico, essa profecia faz mais sentido: Deus mostra a Jeremias uma vara de amendoeira (שָׁקֵד) e diz que essa amendoeira é um símbolo da ação de Deus, que vela (שֹׁקֵד) sobre sua palavra.
O que é semântica?
Mas o que isso tem a ver com a semântica? A semântica é a parte da linguística que investiga significação. Por causa disso, a semântica frequentemente mistura com outras disciplinas, como a filosofia, semiótica, lógica, etc. Assim, o que vou explicar aqui é uma definição bastante resumida da semântica, e vou ignorar várias questões mais detalhadas. Lá vai:
A significação pode ser vista de três pontos de vista diferentes:
- O significado do autor – o que o autor quis dizer
- Ex: Uma esposa (não a minha!) diz, “Querido, olha só que sapato lindo!” O significado na mente dela pode muito bem ser “Queria que você comprasse esse sapato pra mim!”
- O significado do texto – o que o texto diz por si só
- Ex: No exemplo acima, a frase por si só é uma atribuição de beleza a um sapato – nada mais do que isso.
- O significado do ouvinte – o que o ouvinte interpreta
- Ex: Dependendo do condicionamento – opa, quero dizer, o relacionamento do marido com sua esposa, ele entenderá que ela estava pedindo um novo sapato, ou que estava comentando a estética de um sapato. É possível ainda que tal marido, desapercebido como é, pense que a esposa esteja falando sobre o sapato masculino que ele pensava em comprar pra si mesmo!
Jogos de palavra geralmente fazem brincadeiras com essas possibilidades diferentes, e tentam contrapor o significado do texto com o significado do autor ou do ouvinte.
Estrutura semântica
Existe um debate antigo em círculos filosóficos sobre o que significa a significação, mas essa não é nossa área. De forma básica, uma coisa significa – ou seja, cria significado – quando ela se refere a outra. Podemos diagramar a estrutura semântica de uma palavra da seguinte forma:

Assim, a palavra “morcego” se refere a um animal na realidade. É por isso que dizemos que toda língua é referencial; isto é, nenhuma língua está mais perto da “coisa em si” do que outra. “Water” não é uma descrição melhor do que מַיִם, água ou น้ำ para H2O – cada língua faz referência a essa substância, mas nenhuma está mais perto da essência física da coisa em si.
Acho que com o simples fato de perceber que a língua é referencial, já podemos desmistificar algumas ideias sobre o hebraico. É comum dizer que a mente hebraica e a língua eram mais poéticas, mais visuais, ou mais vivas, do que o grego ou outras línguas. Certamente, é possível pensar assim quando vemos que o verbo hebraico não aparenta ter exatidão temporal, ou quando vemos que a mesma raíz pode ser utilizada para expressar várias coisas, com poucas mudanças vocálicas ou afixadas. Porém, essa ideia falha por duas razões: 1) como já disse, todas as línguas são, essencialmente, referenciais; o hebraico não tem um acesso mais privilegiado a imagens, poesia, etc. do que outras línguas; 2) esse argumento supõe que a mentalidade de uma cultura é determinada pela língua utilizada nessa cultura. Embora, é claro, uma língua molde a maneira como pensamos sobre certas coisas (veja alguns exemplos muito interessantes aqui em um artigo publicado por uma professora de linguística cognitiva), ela não pode ser considerada como a única responsável pela mentalidade de uma cultura inteira!
Outra coisa: palavras são referenciais, mas não são apenas referenciais. Nenhuma palavra deve ser estudada de modo isolado. Infelizmente esse post já está longo demais! Se você quiser saber mais sobre a semântica, escreva um comentário abaixo!
Esse post foi o quarto numa série sobre o Hebraico Bíblico e a Linguística. Veja os demais posts na série:
- O Hebraico Bíblico e a Linguística
- O Hebraico Bíblico e a Fonologia
- O Hebraico Bíblico e a Morfologia
- O Hebraico Bíblico e a Sintaxe
- O Hebraico Bíblico e a Pragmática
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Não sei se será alvo de um post futuro, mas gostaria de ler algo sobre o campo semântico para definirmos as estruturas do texto, como colon, linhas, estrofes, no caso da poesia, por exemplo…
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Opa! Boa ideia Thiago! Não era um alvo, mas agora será. A Adele Berlin (esqueci o nome do livro dela) escreveu bastante sobre estruturas poéticas, mas não me lembro se o livro dela tratava da estrutura especificamente em termos da semântica… vou investigar e escreverei sobre isso em um post futuro.
De qualquer maneira, esse sábado terei um post sobre a sintática e mostrou um pouco como definirmos estruturas na benção Araônica em Nm 6.22-27
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Shalom. Danillo, você poderia fazer um texto a respeito de pontuações no hebraico bíblico que não são sinais vocálicos? Por exemplo aquele simbolo que se parecesse com “<", que fica acima das palavras.
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Olá Malachi,
Eu já fiz um vídeo sobre os acentos massoréticos (Unidade 22-5). Se você quiser saber sobre um acento que não discuto no vídeo ou saber outras informações, deixe-me saber e verei o que posso fazer.
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Professor Danilo, que alegria conhecer seu material. Sinceramente, muito feliz mesmo, sem sombra de dúvidas, farei constantes consultas e com certeza aprenderei muito. Muito obrigado, pelo material disponibilizado e oro ao ETERNO que ELE lhe resplandeça o ROSTO, e lhe guarde.
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Muito obrigado, Wesley! Espero que esse material possa ser de ajuda a ti e ao teu ministério, irmão.
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Tu vais dar continuidade ao Aramaico? Shalom.
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Sim, mas infelizmente ainda vou demorar um tempo para continuar…
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Olá Danilo,
obrigado pelo Post!
Gostaria de saber mais sobre o Shoresh (raiz) e Mishqal (padrão) em hebraico, porque acho muito interessante e muito útil…Mas não encontro explicações/introduções aprofundadas no assunto. Você poderia fornecer ou indicar algo? Muito obrigado! Deus te abençoe!
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Olá Claudio,
Sim, mais tarde posso fazer uma explicação sobre essas duas coisas. Explico raízes de uma forma básica nos vídeos da Unidade 2, e explico o padrão dos verbos no quarto vídeo da Unidade 10, mas é bom também explicar de uma maneira mais aprofundada. Assim, espero escrever um post sobre isso mais tarde.
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Obrigado , excelente trabalho de partilha de conhecimento.
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Boa tarde. Tenho uma dúvida: O que exatamente o padrão ´´TAQUETUL“ significa e onde acontece sua aplicação. Grato.
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Não faço a mínima ideia! Onde você ouviu isso?
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