Hebraico e Cultura: Línguas semíticas e mentalidade semítica?

Nunca me esquecerei do choque cultural que tive ao ser convidado a um BBQ (“barbecue”, ou churrasco) americano. Já estava morando nos Estados Unidos um bom tempo, e um presbítero da minha igreja me convidou à sua casa para o tal “churrasco”. Ao chegar em sua casa, conversei com algumas pessoas e logo o presbítero, sabendo que eu era brasileiro e que sabemos de churrasco, me chamou para mostrar a carne que ele havia preparado:

Hambúrguer

Isso mesmo. Um hambúrguer! Eu, sem saber como responder (e sem saber se era piada ou não) sorri aquele sorriso sem-graça e disse, “que legal!” Ele continuou a se gabar da sua perícia culinária e me disse que o hambúrguer ficaria mil vezes melhor com queijo. E não qualquer queijo, meu amigo, mas esse queijo aqui:

Queijo.jpg
Pois é… Esse produto plastificado com gosto de tanto produto químico que duvido que em algum ponto de sua produção houve uma vaca envolvida.

Fui avisado que teria um choque cultural, mas não quis acreditar. Contudo, minha experiência do “churrasco” americano não deixou dúvida nenhuma: eu já não estava mais no meu país. Tudo isso por causa de uma palavra que traduzi em minha mente: BBQ, o “churrasco”.

Sociolinguística: palavras e cultura

Palavras não são somente veículos de comunicação, mas veículos de comunicação arraigados numa cultura específica. Sendo assim, as palavras, expressões e construções de cada língua são ajustadas à cultura na qual ela é desenvolvida. A própria Bíblia, ao descrever linguagens, frequentemente as associa a culturas e sociedades. Veja só o seguinte texto:

‎וְאָנֹכִי מַעֲשֵׂיהֶם וּמַחְשְׁבֹתֵיהֶם בָּאָה לְקַבֵּץ אֶת־כָּל־הַגּוֹיִם וְהַלְּשֹׁנוֹת וּבָאוּ וְרָאוּ אֶת־כְּבוֹדִי׃

Porque conheço as suas obras e os seus pensamentos e venho para ajuntar todas as nações e línguas; elas virão e contemplarão a minha glória. (Isaías 66.18)

Note aqui que Isaías usa a palavra “línguas” como objeto do verbo “ajuntar” em relação paralela à palavra “nações”. Em outras palavras, “todas as línguas” é sinônimo de “todas as nações”. É claro que esse é um uso metonímico de “línguas”, mas a relação que quero salientar aqui é que, em se pensar sobre nações como línguas, a Bíblia usa “lingua” como um limite, um demarcador, de cultura.

A sociolinguística é um ramo da linguística que investiga essa conexão que existe entre culturas e suas linguagens. Mais especificamente, em hebraico, a sociolinguística tenta propor como o hebraico que temos nas Escrituras interage com as realidades políticas e históricas. Portanto, a sociolinguística pode explicar questões abrangentes, como o estado da cultura exílica de Israel nos tempos da escrita de Daniel e Esdras e como eles eram claramente bilíngues. Ao mesmo tempo, pode tentar explicar pequenas nuances do texto, como a escolha de diferentes autores em se usar mais ou menos de uma forma verbal, como o verbo Qatal ou um particípio.

Abusos da sociolinguística

Você já assistiu o filme A Chegada? Se não, pára tudo agora e vá assistir! Se quiser continuar lendo mesmo sem assistir, este será seu último aviso: depois da foto abaixo, vou estragar o final do filme!

AChegada

No filme, naves alienígenas aparecem ao redor de todo o mundo de repente. Depois de um tempo, os seres extraterrestres tentam se comunicar com os seres humanos através de símbolos como esse acima. As mentes mais brilhantes de cada país são recrutadas para tentar decifrar os símbolos e comunicarem com os alienígenas. Durante o processo, a protagonista, Louise Banks, uma linguista, começa a entender a linguagem complexa um pouco mais e, ao mesmo tempo, começa a ter visões e sonhos sobre o passado e futuro. No final, ela descobre que ao aprender a língua alienígena, ela também passou a entender o tempo como eles o entendem – de forma instantânea. Em outras palavras, ao entender a língua que ultrapassava barreiras humanas, sua mente também ultrapassou as mesmas barreiras.

O filme tem sua base nas teorias linguísticas dos linguistas Edward Sapir e Benjamin Whorf, desenvolvidas em meados do século 20, que diziam que a linguagem de uma pessoa determina sua maneira de pensar, ou pelo menos exerce uma forte influência sobre suas decisões. Teólogos logo tomaram essas teorias linguísticas e as aplicaram ao estudo da Bíblia, dizendo que a mente semítica era menos racional e mais emocional, que a mente grega era mais racional e lógica, etc. Esse modo de pensar influenciou, de grande modo, a criação de dicionários teológicos do grego e hebraico bíblico, entre várias outras publicações.

O problema é que essa aplicação das teorias de Sapir e Whorf foi assumida, não provada, do texto bíblico. Sem base nenhuma para suas alegações, esse movimento caiu em descrença quase que de súbito com a publicação de The Semantics of Biblical Language, de James Barr. Muitas das ótimas dicas do livro de Carson, Perigos da Interpretação Bíblica, vêm de esclarecimentos feitos por Barr ao mostrar os errosde associar mentalidade e linguagem tão subitamente como havia sido feito. Realmente, até hoje muitos de nós cometemos erros ao associar uma língua imediatamente com uma forma de pensar. Não podemos dizer que o judeu era irracional somente porque ele falava hebraico ou que o Novo Testamento contém mais argumentos porque ele foi escrito em grego. Se você tem interesse na sociolinguística, recomendo que leia o livro de Carson como uma boa inoculação contra erros que frequentemente nos acometem com a empolgação de uma nova teoria!

Então como é que a sociolinguística me ajuda?

Existem várias maneiras como a sociolinguística pode nos ajudar na exegese bíblica. Seguem abaixo algumas maneiras meio desorganizadas que me vêm à mente no momento:

A sociolinguística pode ajudar a entender o contexto social de certos livros bíblicos.

Temos resquícios arqueológicos (chamados óstracos) de uma cidade da Judéia chamada Laquis. Óstracos são cacos de vasos que eram utilizados para escrever mensagens; já que papel (e papiro) ou velino (pele de animal) eram materiais mais caros, reservados para escribas importantes, o resto do mundo utilizava óstracos.  O livro de 2 Reis descreve a cidade de Laquis como uma das cidades fortificadas que foi tomada pelo rei da Assíria durante o reino de Ezequias (18.13-14). O rei Ezequias também reinou durante o tempo do profeta Isaías. Assim, esses óstracos nos dizem bastante sobre a situação cultural de Israel durante o tempo da escrita do livro de Isaías. Por exemplo, o óstraco abaixo é uma carta de um oficial Israelita de um posto menos importante dizendo ao seu superior que ele se sentia ofendido por ser chamado de analfabeto!

Lachish_3
Cópia do óstraco Lachish III

Se quiser ler um artigo sobre implicações sociolinguísticas desse óstraco, veja um artigo em inglês aqui. O autor conclui que devemos rever nossas noções sobre a alfabetização em Israel no tempo da monarquia. O conhecimento desse dado social sobre Israel nos tempos de Isaías já revela novas dimensões ao chamado de Isaías 8.19-20: “Quando vos disserem: Consultai os necromantes e os adivinhos, que chilreiam e murmuram, acaso, não consultará o povo ao seu Deus? A favor dos vivos se consultarão os mortos? À lei e ao testemunho!

A sociolinguística pode ajudar a decifrar questões fonológicas ou grafêmicas do hebraico bíblico.

Esse ponto precisa ser desenvolvido – e muito – nas discussões acadêmicas. Poucas pessoas interessadas em sociolinguística tem interesse também no sistema fonológico (isso é, dos sons) ou grafêmico (isso é, da escrita) do hebraico antigo. Ao comparar escritas diferentes dos nossos achados arqueológicos em Israel com outros achados de outras culturas e com o texto bíblico, é possível determinar como os Massoretas preservaram (ou não) a pronúncia original do hebraico no tempo de sua escrita.

Um exemplo curioso é o da escrita הִוא para o pronome pessoal 3fs. Explico esse fenômeno brevemente aqui, mas ninguém sabe porque esse é o caso. Veja só: se escrevermos o pronome pessoal 3ms sem vogais, ele é escrito da seguinte forma: הוא, que é a mesma forma consonantal da forma mais rara do pronome 3fs que aparece no Pentateuco! Parece que os massoretas mantiveram essa forma ambígua de um texto consonantal, mudando apenas as vogais. Mas como o texto pré-massorético distinguia a pessoa feminina da masculina? Será que era apenas pelo contexto? Porque os massoretas não mudaram a forma הִוא para הִיא? Essas são ótimas perguntas para a sociolinguística e um aluno bem motivado!

A sociolinguística pode nos dar maior acesso ao registro de um certo autor ou livro bíblico.

Se dissesse a você, “Nó, sô, mas fiquei grilado dimais cum aquele trem onti”, provavelmente seria difícil me entender, mas com certeza saberia que sou mineiro! Existem vários regionalismos, gírias, e jargão que utilizamos no dia a dia, e tudo isso depende das nossas situações sociais. Assim, um doutor explicará o problema de um paciente a outro com certa linguagem, mas se comunicará com seu paciente de outra forma. Do mesmo modo, poucos de nós conversamos sobre a “imputação da justiça de Cristo” com nosso padeiro. Isso é um registro – os confins socio-linguísticos que existem em determinada obra e de determinado autor.

Permita-me mostrar um exemplo um tanto quanto… estranho… Em 1 Samuel 24.3, vemos que Saulo entra numa caverna para “aliviar o ventre” (ARA). O hebraico nessa passagem na verdade é ‎ וַיָּבֹא שָׁאוּל לְהָסֵךְ אֶת־רַגְלָיו, que podemos traduzir mais literalmente como “E Saulo entrou para cobrir seus pés” (cf. Juízes 3.24). Já no mesmo livro, em 1 Samuel 25.22, Davi na sua fúria promete que matará cada um “do sexo masculino dentre os seus” (ARA). Contudo, o hebraico aqui é ‎ מַשְׁתִּין בְּקִיר, que podemos traduzir mais literalmente  como “dos que urinam na parede”. Como que o mesmo texto trata as funções do corpo de Paulo tão delicadamente ao mesmo tempo que utiliza uma expressão tão crassa para simplesmente se referir a pessoas do sexo masculino?

É em casos assim que a sociolinguística pode ajudar, ao tentar descrever o registro do autor – isso é, as diferentes opções linguísticas que lhe eram disponíveis em determinadas ocasiões.

A sociolinguística pode esclarecer a estrutura conceitual de diferentes ideias ou metáforas predominantes no texto hebraico.

A linguística cognitiva, em tempos presentes, tem feito grandes avanços no estudo da metáfora e na maneira que construímos sistemas de pensamento baseado nas nossas culturas. Veja só algumas metáforas que são bem específicas à situação cultural brasileira: “Você pisou na bola, heim?”, “A última pergunta? Chutei!”, “Ele é o centroavante da empresa.”, “Quase passei! Bati na trave!”, etc. Como traduziríamos essas expressões a uma língua de uma população que não tem a mesma paixão pelo futebol que o povo brasileiro?

Existem várias metáforas que são únicas ao contexto hebraico também, e a sociolinguística pode nos ajudar a compreendê-las. Por questões de tempo e espaço, não vou dar um exemplo no momento, mas prometo ter um ou outro artigo no futuro que explorará esse assunto em maior detalhe.


Até a próxima pessoal, e não se esqueça: se um americano te oferecer um “barbecue” – a tradução correta não é “churrasco”!!

Um comentário sobre “Hebraico e Cultura: Línguas semíticas e mentalidade semítica?

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