Como usar o hebraico para preparar um sermão, parte 2

Faz muito tempo que eu não escrevo nessa série! Se quiser refrescar sua memória da parte 1 desse post, clique aqui.

Então vamos lá! Vamos continuar dando dicas de como você pode usar seu conhecimento do hebraico para preparar um sermão.

Já me deparei muitas vezes com o “horror do papel branco” ao preparar um sermão. Espero que essas postagens te ajudem a superá-lo!

Como usar o hebraico para preparar um sermão

Assim como na primeira parte desse post, gostaria de lembrar que o que temos embaixo são dicas, não regras. Situações diferentes (e textos diferentes) exigirão que você adapte cada dica de uma forma diferente.

Portanto, no primeiro post, recomendei que você seguisse a seguinte sequência: 1) traduza todo o texto, 2) leia e releia o texto em hebraico, 3) note e anote características literárias do texto. Creio que realmente essas três são as partes mais importantes do estudo do texto ao preparar um sermão. Os pontos a seguir são muito mais situacionais e ajudam apenas em alguns casos.

4. Estude palavras estranhas

Como faço isso? Para uma explicação mais elaborada, veja minha postagem aqui. O método que elaboro ali é longo e complicado, mas podemos resumir esse ponto da seguinte forma:

  1. Por que a palavra é estranha? – você não precisa estudar todas as palavras num texto. Apenas as que são estranhas. Seguem algumas possíveis estranhezas:
    • Talvez a palavra apareça apenas uma ou duas vezes em todo o AT. Nesse caso, ela deve ser estudada com a ajuda de um bom léxico.
    • Talvez apresente um problema textual. Nesse caso, é necessário um estudo manuscritológico.
    • Talvez comunique uma imagem de uma cultura que você não conhece. Nesse caso, um bom atlas ou comentário pode te ajudar.
    • Talvez se encontre numa forma gramatical ou sintática inesperada. Nesse caso, precisamos fazer um estudo léxico.
    • Talvez seja uma palavra-chave. Nesse caso também precisamos fazer um estudo léxico.
    • Talvez seja estranha por ser diferente da tradução que você usará para pregar. Veja o ponto 5 abaixo.
  2. Explique a estranheza da palavra.

Pronto! Parece resumido demais? Então vá ler a outra postagem! A verdade é que existem muitas palavras ou pensamentos estranhos em nossas Bíblias. E aqui, para explicar essas estranhezas, entra todo o campo da exegese e hermenêutica. Apenas tome bastante cuidado para não transgredir regras da linguística ao explicar essa palavra.

Como isso melhora meu entendimento do texto? Antes de responder essa pergunta, quero te lembrar que quando digo “explique a palavra”, quero dizer que você está fazendo isso nos seus estudos, não no seu sermão. Pelo menos ainda não. Nós precisamos fazer perguntas ao texto e tentar respondê-las. É esse nosso trabalho como exegetas fiéis.

Então como o estudo de palavras estranhas me ajuda a compreender o texto? Em primeiro lugar, esse estudo me ajuda porque eu noto as palavras estranhas. São essas as palavras que muitas vezes confundirão sua congregação, especialmente se você não explicá-las. Portanto, ao não somente notá-las, mas explicá-las, você começa a lutar com o texto, não como um pugilista que busca submetê-lo à sua vontade, mas como Jacó, que não parou de lutar até receber uma bênção de Deus (aliás, aí está uma estória cheia de palavras estranhas!).

Um exemplo bem simples disso é explicar o que é um “sol de justiça” em Malaquias 3.21 (ou 4.1 em nossas Bíblias em português).

Mas para vós outros que temeis o meu nome nascerá o sol da justiça, trazendo salvação nas suas asas…
וְזָרְחָה לָכֶם יִרְאֵי שְׁמִי שֶׁמֶשׁ צְדָקָה וּמַרְפֵּא בִּכְנָפֶיהָ

Malaquias 3.20 (4.1)

A expressão “sol da justiça” aparece só aqui no AT. Será que o sol em si é justo, servindo assim de metáfora para a pessoa de Cristo na sua segunda vinda? Ou será que ele é um sol que produz justiça, servindo assim para explicar a ideia do “Dia do Senhor”, que é tão central a essa passagem? Ao explicar essa pequena frase, você entenderá melhor o texto e possivelmente poderá explicá-lo melhor também.

5. Leia o texto em português com base no seu conhecimento do texto em hebraico

A maioria dos professores de línguas bíblicas te desencorajará de ler o texto bíblico em português; e estão corretos. Para aprender hebraico, quanto menos contato você tiver com português, melhor será seu aprendizado. Mas para a preparação de um sermão, é imprescindível que você leia o texto em português depois de fazer seu estudo com base no texto em hebraico.

Como faço isso? Seguindo certos passos…

  1. Com humildade. Você não é o bam-bam-bam do hebraico! Não pense que você está corrigindo a Bíblia em português.
  2. Leia cada texto lado a lado e anote as diferenças entre seu entendimento do texto e o entendimento dos tradutores.
  3. Quando houver diferenças, defenda sua posição ou aceite a posição da Bíblia traduzida.
  4. Se houver diferenças, prepare-se para explicá-las no seu sermão ou evitá-las.

Como isso melhora meu entendimento do texto? Todo tradutor (inclusive você!) é um intérprete, e toda tradução, uma interpretação. Ao estudar a interpretação de outros homens e mulheres, teremos outra opinião da interpretação do texto.

— discussão tangencial —

Ao mesmo tempo, essa etapa é importantíssima para, como disse acima, explicar ou evitar as diferenças do texto em nosso sermão. Essa parte é a mais difícil, e requer bastante discernimento. Por um lado, queremos ser fiéis à palavra de Deus. Por outro lado, não queremos corroer a confiança dos membros da nossa igreja no texto Bíblico que eles têm em suas mãos. Permita-me explicar com um exemplo:

Em Isaías 61.1, o texto da ARA diz “O Espírito do Senhor Deus está sobre mim, porque o Senhor me ungiu para pregar boas-novas aos quebrantados, enviou-me a curar os quebrantados de coração, a proclamar libertação aos cativos e a pôr em liberdade os algemados”.

As duas palavras destacadas acima traduzem, respectivamente, as palavras hebraicas עֲנָוִים e נִשְׁבְּרֵי־לֵב. Portanto, existem alguns problemas aqui:

  • עָנָו pode ser traduzido também como “pobre” ou “humilde”.
    • Considerando que os “quebrantados de coração” aparecem logo em seguida depois dessa palavra, eu prefiro traduzir essa primeira como “pobre” mesmo. Ao usar o mesmo termo em português, especialmente no mesmo versículo, o tradutor comunica que o termo em hebraico também era o mesmo, e não é esse o caso aqui.
    • Talvez os tradutores da ARA queriam manter o texto em seu âmbito espiritual e não dar a ideia que Deus vem para solucionar problemas sociais e/ou econômicos mas, para mim, a tradução de עָנָו como “pobre” continua sendo melhor.
  • Em Mateus 5.3, Jesus diz “abençoados os pobres de espírito” (minha tradução do grego… não temos tempo para entrarmos na discussão do grego aqui), e creio que ele faz alusão a esse texto de Isaías 61.1. Se eu quiser destacar essa alusão em meu sermão, preciso pensar bem em como fazê-la.

Com isso em mente, preciso decidir entre as seguinte opções:

  1. Será que passo por cima e não menciono que a palavra aqui é “pobre”? Afinal, quem é pobre também é “quebrantado”.
  2. Será que digo “existem maneiras diferentes de traduzir esse termo, como ‘mansos’ (ARC) ou ‘pobres’ (NTLH e KJA), e:
    • prefiro a tradução ‘pobres'”?
    • todas são válidas”?
    • todas expressam uma ideia semelhante”?
  3. Será que digo “infelizmente, creio que essa tradução está errada nesse caso”?

Pense bem sobre como você apresentará essas divergências, buscando sempre encorajar sua igreja a ler mais a sua Bíblia em português! Em certos casos, a opção 1 será mais vantajosa, já que a diferença não virá ao caso em seu sermão. Mas se seu sermão for acerca da nossa pobreza espiritual diante da riqueza de Deus, acho melhor você explicar o termo! São pouquíssimas as vezes em que teremos que tomar a opção 3. Se você se encontra tomando essa opção três ou quatro vezes por ano, considere mudar de tradução!

— término da discussão tangencial —

Bom… é isso aí. O conhecimento da língua hebraica pode ajudar – e muito – na preparação de um sermão. Mas lembre-se que depois de todo esse estudo há ainda o trabalho homilético de meditar sobre a mensagem do texto, cogitar e escrever um esboço ou manuscrito para seu sermão com pontos claros, ilustrações prestativas e um argumento conciso!


Esse post faz parte de uma série de posts sobre o uso do hebraico no sermão. Veja abaixo outros posts da série:

  1. Como NÃO usar o hebraico no sermão, parte 1
  2. Como NÃO usar o hebraico no sermão, parte 2
  3. Como usar o hebraico no sermão
  4. Como usar o hebraico para preparar um sermão, parte 1
  5. Como usar o hebraico para preparar um sermão, parte 2

5 comentários sobre “Como usar o hebraico para preparar um sermão, parte 2

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