*Nota: para ninguém dizer que me plagiei (isso existe mesmo!), quero deixar claro que copiei algumas coisas que já coloquei na minha resenha um pouco mais formal para a Fides Reformata.
Alguns dos meus leitores se lembrarão desta cena de Debi e Loide:

Os dois atrapalhões chegam a uma festa de traje formal vestidos com roupas formais, mas ao mesmo tempo completamente impróprias para a situação. Embora a camisa com babados e os chapéus não fazem parte do que se espera numa festa desse estilo, o humor aqui se encontra mais nas cores berrantes que os dois vestem numa ocasião que deveria ser mais solene. Por um lado, a “forma” de sua vestimenta está correta. Isso é, eles estão vestidos de smokings, assim como os demais convidados. Mas nem uma criança se enganaria aqui – o que eles estão vestindo está completamente errado! Como nós entendemos isso? Nesse caso, nossos cérebros calculam imediatamente qual é o contexto, e o que deve ser adequado a esse contexto. Não há mais ninguém com roupas coloridas. Todos se vestem de preto e branco, roupas sombrias e solenes. Somente dois “debilóides” não perceberiam isso!
Mas agora vamos pensar num caso um pouco mais difícil. Às vezes sou convidado a pregar em lugares diferentes do local onde estou acostumado a pregar. Devo ir de terno? De camisa social? Ou só uma camisa com gola pólo? Geralmente, pergunto os pastores da região, mas mesmo assim, quando chego no local, fico com aquela suspeita que deveria ter usado uma roupa diferente. Afinal, eles me falaram que eu podia vir só de camisa social, mas quase todos eles estão de terno! “Será que eu deveria ter vindo de terno ou será que eles estão com frio?”
Um dia, cheguei na minha sala de aula e notei que havia algo diferente, mas não sabia dizer o que era. Só fui notar, bem mais tarde, quando um aluno me perguntou “professor, o senhor não está com frio?” que eu era o único só usando camisa. Todos meus alunos estavam com blusa de frio! E nesse caso? Será que estava errado por vestir só uma camisa quando eu me sentia bem com a temperatura?
Cada uma dessas estórias nos mostram a importância de conhecer quais roupas vestir em determinadas ocasiões. Esse conhecimento vem a nós através de nossas experiências culturais. Mas agora imagine se você fosse sair do Brasil para morar numa vila no Japão ou numa tribo na África. Você saberia distinguir entre roupas festivas e roupas do dia a dia? Entre roupas usadas para casa e roupas usadas para trabalho? Roupas usadas para casamento e roupas usadas para outras festas?
Esse é o mesmo problema de aprender o hebraico sem conhecer o seu contexto. Você pode catalogar todos os tipos de roupas que existem nesse novo paradeiro, conhecer o tecido, as cores, o que é um smoking, mas isso não importa se você não sabe em que ocasião se deve vestir uma roupa assim. O contexto é tudo.
Quando ensinamos hebraico bíblico, ensinamos o que é um wayyiqtol (ou imperfeito consecutivo) ou o que é um verbo weqatal (perfeito consecutivo). Te ensinamos a identificar e analisar o verbo e também te ensinamos a traduzi-lo. Mas não ensinamos o contexto adequado para o mesmo. Embora, na gramática tradicional, te ensinemos que o wayyiqtol geralmente mostra a linha principal de uma narrativa, não explicamos o que é isso e não destacamos esse fator para você nos seus exercícios. Da mesma forma, não explicamos que o principal uso do weqatal é para mostrar a linha principal de vários gêneros de discurso direto com projeção positiva (veja Rocine, pág. 110 para uma explicação disso). Não mostramos como cada forma verbal tem seu devido lugar.
Objeção 1: “Mas qual é o problema com isso, Danillo? Afinal, eu não preciso criar frases novas em hebraico. Só preciso ler o texto. Eu não preciso ir vestido ao casamento de modo apropriado. Só preciso observar os participantes.” Pois é, mas e se houver um participante vestindo de forma errada? E se, de repente, aquela festa de casamento se tornar num luto pelo noivo? Ok… minha analogia está se despedaçando aqui… Mas é sério – como você conseguirá notar a mudança de um gênero discursivo se você nunca estudou o discurso do hebraico? Às vezes um weqatal aparece no meio de um monte de wayyiqtols no meio de uma narrativa e não há nenhum interlocutor. O que fazemos com isso?
Gramáticas tradicionais (como os meus vídeos) não nos ensinam a lidar com esses problemas. Foi aos trancos e barrancos que eu fui aprendendo esse tipo de coisa, lendo um artigo aqui, outro livro ali… mas e se fosse possível ensinar tudo isso já no primeiro ano de hebraico? A gramática de Rocine faz justamente isso. Ela vai além da ênfase em semântica e morfologia, abordando questões de sintaxe, pragmática e gênero, proporcionando ao aluno um entendimento mais englobado e menos atomístico da língua. Para se ter uma ideia do modo em que Rocine faz isso, dê uma olhada nas duas páginas abaixo, nas quais ele faz um resumo das formas verbais do hebraico e o que elas expressam (abra a imagem em outra guia se você não conseguir visualizá-la bem aqui):

Dessa forma, Rocine não descreve os verbos de uma forma simplística, mas mostra como, em cada contexto diferente, eles assumem uma posição diferente. Isso é, eles se vestem diferentemente dependendo do contexto semântico, discursivo e de gênero.
Objeção 2: Outra possível objeção a ensinar análise do discurso junto com toda a gramática é que pode ser muito conteúdo para o aluno. Afinal, normalmente se começa a estudar a sintaxe e o discurso do hebraico somente no segundo ou terceiro ano de estudos! Mas a essa objeção eu ofereço duas contra-objeções: 1) o cérebro humano consegue processar e aprender muito mais do que você imagina e 2) claro que não é muito material! Nós aprendemos por relevância (veja meu post anterior). Quando criança, não aprendemos qual é o tecido da roupa, como ela deve ser lavada, etc. Aprendemos quais os contextos em que ela deve ser vestida (uniforme de escola, roupa de igreja, pijama, shorts de futebol, roupa de praia, etc.) e como ela se sente em nossos corpos. Da mesma forma, ao aprender uma língua, é imprescindível aprender que “era uma vez” não se aplica apenas a estórias, mas estórias fantásticas. O discurso é o que torna nosso aprendizado relevante e, portanto, mais memorável e fácil de aprender.
Espero que esses posts esclarecem porque eu acho que a gramática de Rocine é a melhor gramática hebraica que existe hoje no mercado brasileiro… Veja abaixo links para as demais partes dessa resenha:
- Hebraico Bíblico, parte 1 – O princípio de relevância
- Hebraico Bíblico, parte 2 – O princípio do discurso
- Hebraico Bíblico, parte 3 – O princípio da centralidade da língua-alvo
- Hebraico Bíblico, parte 4 – Ressalvas
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