Tradução é um trabalho difícil. No processo de tradução, é necessário ter duas estruturas linguísticas ativadas ao mesmo tempo em sua mente – a estrutura da língua-fonte e a estrutura da língua-alvo. Além do mais, nesse processo, os melhores tradutores conseguirão traduzir não somente vocábulos sinônimos da língua-fonte, mas conseguirão transmitir também as nuances da pessoa que está falando. Por exemplo, qual é a melhor tradução de “what’s up” em inglês para o português? Seria “tudo bem”? “fala mano”? “oi”? Claro que nunca “o que está para cima?”! No caso, as primeiras poderiam ser traduções viáveis, mas nem todas transmitem a nuance correta do seu contexto. É por isso que léxicos, dicionários bilíngues, ou softwares nunca serão capazes de fazer uma tradução “perfeita”. É por isso também que nós buscamos aprender o hebraico bíblico; isso é, para compreender algumas pequenas nuances que poderão passar desapercebidas apenas ao ler uma tradução ou Bíblia interlinear.
Quero falar hoje sobre um texto que apresenta certas dificuldades na sua tradução e explicar 1) porque os tradutores das nossas bíblias em português tomaram as decisões que tomaram e 2) como o conhecimento da língua-fonte do texto bíblico (no caso de hoje, o hebraico) pode aprofundar nossa apreciação de certas palavras em Gênesis 22.
Gênesis 22 é um capítulo muito importante na Bíblia. Afinal, como o autor de Hebreus nos diz, “Pela fé, Abraão, quando posto à prova, ofereceu Isaque; estava mesmo para sacrificar o seu unigênito aquele que acolheu alegremente as promessas, a quem se tinha dito: Em Isaque será chamada a tua descendência; porque considerou que Deus era poderoso até para ressuscitá-lo dentre os mortos, de onde também, figuradamente, o recobrou” (Hb 11.17-19). Esse ato de fé estabeleceu todo o curso da história de Israel e ao mesmo tempo prefigurou o sacrifício de Cristo. Contudo, existe um problema de tradução nesse capítulo.
O problema
O problema nas nossas traduções se dá devido a um verbo bastante comum em hebraico – o verbo ראה – que geralmente é traduzido de duas formas diferentes. Veja só abaixo:
ראה em Gênesis 22.4
- […] viu o lugar de longe. (ARA)
- […] viu o lugar de longe. (ARC)
- […] viu de longe o lugar […] (KJA)
- […] viu o lugar de longe. (NVT)
- […] viu o lugar ao longe. (NVI)
ראה em Gênesis 22.8
- […] Deus proverá para si […] (ARA)
- […] Deus proverá para si […] (ARC)
- […] Deus proverá para si […] (KJA)
- Deus providenciará o cordeiro […] (NVT)
- […] Deus mesmo há de prover o cordeiro […] (NVI)
ראה em Gênesis 22.13
- Tendo Abraão erguido os olhos, viu […] (ARA)
- […] levantou Abraão os seus olhos e olhou […] (ARC)
- […] tendo Abraão erguido os olhos, viu […] (KJA)
- Então Abraão levantou os olhos e viu (NVT)
- Abraão ergueu os olhos e viu (NVI)
ראה em Gênesis 22.14
- E pôs Abraão por nome àquele lugar — O SENHOR Proverá. Daí dizer-se até ao dia de hoje: No monte do SENHOR se proverá. (ARA)
- E chamou Abraão o nome daquele lugar o SENHOR proverá; donde se diz até ao dia de hoje: No monte do SENHOR se proverá. (ARC)
- Então Abraão deu àquele lugar o nome de Yahweh-Jireh, “O SENHOR Proverá”. Por isso até nossos dias se diz: “No monte do SENHOR se proverá”! (KJA)
- Abraão chamou aquele lugar de Javé-Jiré [nota de rodapé: Javé-Jiré significa “O Senhor providenciará“]. Até hoje, as pessoas usam esse nome como provérbio: “No monte do Senhor se providenciará”. (NVT)
- Abraão deu àquele lugar o nome de “O Senhor Proverá”. Por isso até hoje se diz: “No monte do Senhor se proverá”. (NVI)
Notou a diferença? No mesmo capítulo; de fato na mesma história, a palavra ראה é traduzida de duas formas diferentes: [1] ver (ou olhar) e [2] prover (ou providenciar). A primeira é a tradução comum para a palavra, mas a segunda tradução não. Portanto, podemos expressar a dificuldade deste capítulo da seguinte forma: como os tradutores sabem que, nos vs. 8 e 14, a mesma palavra ראה, traduzida como “ver” nos vs. 4 e 13, deve ser traduzida de outra forma?
Esclarecimentos
Antes de responder a pergunta, precisamos esclarecer duas coisas: 1) campos semânticos e 2) teorias de tradução. Já falei sobre o primeiro aqui e sobre o segundo aqui, mas vale repetir e elaborar um pouco sobre essas duas coisas.
Campo semântico
Um campo semântico é um conceito de uma palavra. Por exemplo, temos várias palavras em português para aquele artefato com o qual cobrimos ou protegemos nosso pé: calçado, sapato, tênis, sapatênis, chinelo, sandália, bota, chuteira, salto alto, tamanco, etc. Nesse exemplo, a palavra “calçado” tem um campo semântico bem mais abrangente do que “tamanco holandês”. Calçado é um tanto ambíguo; pode ser para homem, para mulher, pode cobrir os dedos ou não, pode ser feito de qualquer material, etc. Já é difícil imaginar um tamanco holandês diferente disso aqui:

Na tradução, devemos sempre lembrar que palavras de línguas diferentes têm diferentes campos semânticos. Para entendermos o que está acontecendo em Gênesis 22, precisamos estudar o campo semântico da palavra ראה e ver se esse campo difere do campo semântico da palavra que normalmente usamos para traduzi-la.
Teorias de tradução
Nos exemplos acima, mostrei apenas cinco das muitas traduções brasileiras que existem hoje em dia. Contudo, mesmo mostrando apenas cinco, já notamos algumas diferenças entre elas, não é? Isso é porque certas traduções tentarão traduzir de uma forma mais perto da língua-fonte (nesse caso, o hebraico) e outras de uma forma mais perto da língua-alvo (nesse caso, o português).
Note, então, a diferença entre as traduções da ARC e da NVT em Gênesis 22.14:
- donde se diz até ao dia de hoje: No monte do SENHOR se proverá. (ARC)
- Até hoje, as pessoas usam esse nome como provérbio: “No monte do Senhor se providenciará”. (NVT)
A segunda tradução está mais para o que chamamos de uma tradução de equivalência funcional. Ela faz mais sentido no português atual e, em vez de traduzir palavra por palavra do hebraico, ela traduz conceito por conceito. Já a ARC está mais para o que chamamos de uma tradução de correspondência formal. Ela fica um pouco rígida em português, porque sabemos que ninguém (pelo menos hoje em dia) fala dessa forma, mas ela preza a tradução de cada palavra ou unidade hebraica para uma palavra ou unidade menor em português.
Normalmente, traduções equivalentes funcionais usam diferentes palavras na língua alvo (nesse caso, o português) para traduzir a mesma palavra da língua fonte (nesse caso, o hebraico). Elas buscam traduzir de tal forma a expressar a nuance do campo semântico de cada palavra. Já traduções correspondentes formais tentam mostrar ao leitor da língua alvo qual é o palavra da língua fonte. Portanto, no nosso caso, a ARC deveria traduzir ראה sempre pelo verbo “ver”, para mostrar ao leitor que o verbo é o mesmo em hebraico. Mas a ARC, ARA e KJA, que cabem mais para o lado de traduções de correpondência formal, traduziram ראה como “prover” nos vs. 8 e 14. Será que estão sendo inconsistentes com sua própria teoria de tradução?
Solução
Precisamos primeiro explicar o campo semântico de ראה. Já que essa palavra é muito comum no hebraico bíblico (aparece 1309 vezes!), demoraria muito tempo para estabelecer o campo semântico inteiro da palavra. Mas podemos notar que ראה tem um campo semântico bastante abrangente (assim como o verbo “ver” em português). Por exemplo:
ראה no sentido de “ver”
- Gênesis 33.5
- וַיִּשָּׂ֣א אֶת־עֵינָ֗יו וַיַּ֤רְא אֶת־הַנָּשִׁים֙ וְאֶת־הַיְלָדִ֔ים
- Daí, levantando os olhos, viu as mulheres e os meninos […]
- Deuteronômio 4.12
- וּתְמוּנָ֛ה אֵינְכֶ֥ם רֹאִ֖ים זוּלָתִ֥י קֽוֹל
- […] porém, além da voz, não vistes aparência nenhuma.
Esse é um dos usos mais comuns de ראה e, consequentemente, é aquele que memorizamos ao estudar o vocabulário.
ראה no sentido de “perceber”
- Gênesis 1.4
- וַיַּ֧רְא אֱלֹהִ֛ים אֶת־הָא֖וֹר כִּי־ט֑וֹב
- E viu Deus que a luz era boa […]
- Gênesis 7.1
- כִּֽי־אֹתְךָ֥ רָאִ֛יתִי צַדִּ֥יק לְפָנַ֖י בַּדּ֥וֹר הַזֶּֽה
- […] porque reconheço que tens sido justo diante de mim no meio desta geração.
Nesse caso, o verbo ראה não significa que o sujeito usou seus olhos para ver algo fisicamente, pois os olhos não julgam a “bondade” da luz ou de Noé. Mas o campo semântico de “ver” em português também comunica essa ideia; afinal, podemos falar “vejo que você é uma pessoa boa” e ninguém questionaria nosso uso do verbo “ver”.
ראה no sentido de “entender” e “pensar”
- Gênesis 20.10
- מָ֣ה רָאִ֔יתָ כִּ֥י עָשִׂ֖יתָ אֶת־הַדָּבָ֥ר הַזֶּֽה
- Que estavas pensando para fazeres tal coisa? (ARA)
- Que tens visto, para fazeres tal coisa? (ARC)
- O que te levou a fazer isso? (NVI)
- Jeremias 33.24
- הֲל֣וֹא רָאִ֗יתָ מָֽה־הָעָ֤ם הַזֶּה֙ דִּבְּר֣וּ
- Não atentas para o que diz este povo […]
- Habacuque 2.1
- וַאֲצַפֶּ֗ה לִרְאוֹת֙ מַה־יְדַבֶּר־בִּ֔י
- vigiarei para ver o que Deus me dirá
Note que nos últimos dois exemplos, o verbo é utilizado para “ver” uma palavra. Obviamente, não conseguimos ver uma fala. Nós a entendemos. Já no primeiro exemplo, note que as traduções brasileiras têm dificuldade em transmitir o sentido da frase. Fica estranho traduzir, como a ARC faz, “que tens visto”, quando no contexto a frase se refere ao senso (ou falta de senso!) de Abraão.
Mas mesmo assim, note a semelhança entre “perceber” e “entender” ou “pensar”, e que todos esses sentidos estão conectados, em diferentes contextos, à palavra ראה. A mesma coisa acontece em português e na maioria das línguas do mundo. Isso é porque a forma mais comum de percepção do ser humano é através dos nossos olhos. Por isso, visão é frequentemente relacionada à cognição.
ראה no sentido de “cuidar”
- Gênesis 39.23
- אֵ֣ין׀ שַׂ֣ר בֵּית־הַסֹּ֗הַר רֹאֶ֤ה אֶֽת־כָּל־מְא֙וּמָה֙ בְּיָד֔וֹ
- E nenhum cuidado tinha o carcereiro de todas as coisas que estavam nas mãos de José […]
- Êxodo 4.31
- וַֽיַּאֲמֵ֖ן הָעָ֑ם וַֽיִּשְׁמְע֡וּ כִּֽי־פָקַ֙ד יְהוָ֜ה אֶת־בְּנֵ֣י יִשְׂרָאֵ֗ל וְכִ֤י רָאָה֙ אֶת־עָנְיָ֔ם
- E o povo creu; e, tendo ouvido que o SENHOR havia visitado os filhos de Israel e lhes vira a aflição […]
ראה no sentido de “experimentar”
- Salmo 34.12
- מִֽי־הָ֭אִישׁ הֶחָפֵ֣ץ חַיִּ֑ים אֹהֵ֥ב יָ֜מִ֗ים לִרְא֥וֹת טֽוֹב
- Quem é o homem que ama a vida e quer longevidade para ver o bem? (ARA)
- Quem de vós quer ter prazer na vida, e deseja longos dias para viver em felicidade? (KJA)
- Eclesiastes 2.1
- לְכָה־נָּ֛א אֲנַסְּכָ֛ה בְשִׂמְחָ֖ה וּרְאֵ֣ה בְט֑וֹב
- Vamos! Eu te provarei com a alegria; goza, pois, a felicidade
ראה em sentidos parecidos com Gênesis 22.8 e 14
Todos os exemplos acima mostram como o verbo ראה pode se referir a várias ações diferentes, mas “prover” em Gênesis 22.8 e 14 ainda parece ser um caso à parte, não é? Portanto, vamos dar uma olhada em outros contextos que se aproximam dessa área do campo semântico de Gênesis 22.8 e 14.
- Deuteronômio 33.21
- וַיַּ֤רְא רֵאשִׁית֙ ל֔וֹ
- E se proveu da melhor parte […] (ARA)
- Escolheu para si o melhor (NVI)
Nesse texto, vemos que ראה significa escolher. Nesse contexto, existe uma espécie de compressão metafórica entre o “ver” a melhor parte e o “tomar” ou “escolher” essa melhor parte para si. Em outras palavras, a própria visão que a tribo de Gade teve de sua herança é sua escolha. Podemos ver outro exemplo disso abaixo:
- 2 Reis 10.3
- וּרְאִיתֶ֞ם הַטּ֤וֹב וְהַיָּשָׁר֙ מִבְּנֵ֣י אֲדֹנֵיכֶ֔ם
- escolhei o melhor e mais capaz dos filhos de vosso senhor […]
Esse segundo exemplo até se parece com um uso que nós faríamos do próprio verbo “ver”, dependendo do seu contexto. Preste atenção no seguinte exemplo em português:
- [esposa] “Bem, você quer um picolé?”
- [marido] “Sim, querida, pega um pra mim, por favor.”
- [esposa] “Tá, mas qual sabor de picolé você quer?
- [marido] “Não sei, querida… Tô meio indeciso; veja qualquer um aí pra mim, por favor.”
O que o marido está dizendo? Que a esposa deveria só olhar para os picolés? Claro que não! Ela deve escolher um sabor para ele. Poderíamos até dizer que, nesse contexto, o verbo “ver” significa “providenciar“, não é?
Outra coisa: tanto no exemplo de Dt 33.21 quanto no exemplo de 2 Rs 10.3, o verbo ראה é utilizado em conjunção com uma preposição (ל em Dt e מ em 2 Rs). Em português, utilizamos também o verbo “ver” com a preposição “para” quando queremos comunicar o sentido de “escolher” ou “providenciar”. Aliás, o mesmo acontece em Gn 22.8!
Portanto, as traduções que temos estão corretas nesse caso. Mesmo a tradução de correspondência formal continua sendo uma tradução, e precisa comunicar aos seus leitores em português o sentido do texto. Nesse caso, é impossível mostrar que a mesma palavra foi utilizada no texto hebraico nos vs. 4, 8, 13 e 14.
O porém!
Então as traduções não erraram. Mas mesmo assim, parece que perdemos algo, não é? Afinal, toda a passagem está interconectada com esse aspecto da visão – vemos que Abraão vê certas coisas, mas depende da visão (isto é, provisão) sobrenatural de Deus. Logo, por depender da visão sobrenatural d Deus, Abraão também ganha uma visão profética, quando diz, “Deus (pro)verá” no v. 8.
Aliás, o próprio Jesus, em João 8.56, diz, “Abraão, vosso pai, alegrou-se por ver o meu dia, viu-o e regozijou-se.” Para quem entende o hebraico, esse foco na visão de Abraão cria uma suspeita de alusão ao episódio de Gênesis 22. Dessa forma, Abraão viu ali em Gênesis 22 que, no mesmo monte no qual seu filho foi salvo pela (pro)visão de Deus, Deus não somente viu (ou proveu) no passado, mas (pro)veria também para o futuro!
Então não existe uma forma melhor de traduzir esse texto? Talvez. Mas até nosso português mudar ou até descobrirmos uma forma melhor de traduzir esse texto, lembre-se que uma tradução sempre será parcial! Para entender o texto bíblico em todas suas nuances e detalhes, sempre será melhor aprender a língua original.
Pois bem… bons estudos!
Shalom gostei muito!!
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Qual a classificação original do verbo hebraico em Gn 22:8?
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Oi Tadeu,
Como assim, classificação? Gramatical? Nesse caso seria um verbo Qal Yiqtol (Imperfeito ou Incompleto, dependendo de quem você perguntar) 3ms. Por quê?
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