Este post é direcionado, principalmente, a seminaristas e pastores. Isto é, aqueles que atualmente manejam, ou almejam manejar, a palavra de Deus no contexto da pregação. Todavia, espero que outros também possam ser beneficiados!

Certamente, o pastor, seminarista, missionário, ou até mesmo um transeunte que alguma vez passou perto de algum seminário com ouvidos abertos, já ouviu esta conversa:
–Cara, tô muito cansado de estudar tudo isso!
–Nem sei por que estudamos o hebraico hoje em dia! Meu pastor só prega usando a Bíblia em português.
–Pois é! Além do mais, João do último ano disse que fez a aula de pregação e passou sem nem olhar para o hebraico!
–É muito trabalho pra pouca coisa… fala sério!
Se é assim, vamos então “falar sério”. Sabe uma coisa que é séria? O ministério pastoral. Observamos, em Ezequiel 34.11-31, que Deus é o Pastor das ovelhas, e que Ele estabelece seu Messias como Pastor sobre seu povo. Logo, qualquer pastoreio nosso é subordinado ao pastoreio de Cristo (Hebreus 13.20). Se essa responsabilidade já não bastasse, Tiago faz ainda uma forte advertência: “Meus irmãos, não sejais muitos de vós mestres, sabendo que receberemos um juízo mais severo” (Tiago 3.1).
Mas o que tudo isso tem a ver com o estudo do hebraico? Afinal, um pastor pode muito bem ser responsável e até mesmo um exemplo do Supremo Pastor das ovelhas para o seu rebanho sem saber todas as regras do mappiq, verbos fracos e sintaxe hebraica, não? Aliás, essa é a posição dos seminaristas imaginados acima, não é?
Essa pergunta parte do pressuposto que podemos nos dar por satisfeitos com o “mínimo necessário.” Existe a possibilidade de um pastor ser recebido com grande fanfarra e alaúdes nos céus sem nunca ter lido uma letra do grego ou hebraico? Claro que sim! E tenho certeza que veremos essa cena no último dia. Mas isso não desculpa o pastor ou seminarista negligente que teve (ou tem) a oportunidade de aprender as línguas originais e não o fez da melhor forma possível (e é claro que o “possível” aqui é importante!). Quando Paulo exorta Timóteo, diz: “Procura apresentar-te diante de Deus aprovado, como obreiro que não tem de que se envergonhar, que maneja bem a palavra da verdade” (2 Timóteo 2.15). Mas será que não há uma certa preguiça, um desleixo que entra sorrateiramente nas nossas vidas, um sussurro maléfico do diabo que diz, “basta apenas conhecer a Bíblia em português”? Que distorce a exortação de Paulo a Timóteo: “que maneja bem o suficiente a palavra de Deus”? Afinal, não foi Jesus quem disse, acerca de seus servos, que “àquele a quem muito foi dado, muito lhe será exigido; e àquele a quem muito se confia, muito mais lhe pedirão” (Lucas 12.48)?
Entendo também que, muitas vezes, as exigências do pastoreio acabam restringindo as oportunidades de estudo nas linguagens originais do mais devoto amante das mesmas. Há necessidade de visitação, aconselhamento, reuniões administrativas, um evento aqui, programações e retiros de lá, e logo o pastor mal tem tempo para ficar com a família. Porém, Atos 6 é justamente um texto que nos mostra a importância e primazia da oração e pregação no ministério pastoral. Naquele contexto, a igreja enfrentou várias ameaças de fora, que tentaram reprimir a expansão do evangelho. Deus fortaleceu o seu povo contra aquelas ameaças externas, mas não demorou para que o inimigo encontrasse uma outra forma de tentar debilitar a jovem igreja: “houve murmuração dos helenistas contra os hebreus” (Atos 6.1). É importantíssimo notar que o que incita os apóstolos a tomarem ação é o fato de que “não é razoável que nós abandonemos a palavra de Deus para servir às mesas” (Atos 6:2). Em outras palavras, o estudo e ministério da palavra de Deus, para o pastor, toma primazia a qualquer outro ministério (cf. Atos 6:4). Não é correto – e isso é algo que não só os pastores, mas suas ovelhas também, precisam aprender – dar tanta ênfase a outras atividades que o pastor já não tem mais tempo para estudar e aplicar a Palavra de Deus ao povo de Deus.
Bom, chega de defender o uso do hebraico (e por tabela também do grego) no pastorado e na preparação de sermões. Presumo que se você ainda está lendo, você concorda que o uso das linguagens originais na preparação semanal de sermões é útil e necessário para ministros do evangelho. Voltemos, então, à primeira pergunta do post: “Como o hebraico me ajuda na pregação?” Não vou (e nem posso!) explicar exaustivamente cada nuance da pregação de todo e qualquer texto do Antigo Testamento, mas aqui vão algumas dicas do que fazer e não fazer ao aplicar o estudo do hebraico ao sermão (e note que aqui estou focalizando no hebraico, mas vários pontos podem ser aplicados, com algumas modificações, ao grego também):
- O hebraico nos obriga a usar um freio de mão (linguístico) nos nossos estudos. Certamente você já teve aquela experiência de ler um texto (bíblico ou não) e dizer, “Puxa vida! Eu já havia lido esse texto quatrocentas vezes e nunca percebi que ….!” De fato, o cérebro humano é perito em negligenciar detalhes. Minha esposa que o diga! (Ainda bem que ela é paciente!) Mas quando você se força a traduzir cada palavrinha, cada prefixo e sufixo, a determinar onde cada vírgula ou ponto final deve ser colocado (já que o texto hebraico não tem nenhum dos dois), todo detalhe é importante. Essa desaceleração amplia nossos horizontes, abre um mundo imaginativo nas nossas mentes que antes talvez havia sido obscurecido pelo desejo de “chegar logo ao ponto” de um texto. Por exemplo, quantos de nós, antes de estudar o texto hebraico de Jonas 1.4, vimos o elo entre o fim de Jonas 1.3 (“do Senhor”) e o começo de Jonas 1.4 (“Mas o Senhor”)? Normalmente, não pararíamos para pensar “olha só, o narrador aqui repetiu o nome de Deus! Enquanto ‘o Senhor’ é objeto da fuga de Jonas em 1.1-3, ele é sujeito da retribuição e dos planos divinos em 1.4-6”? É possível fazer a mesma coisa simplesmente ao ler o texto trocentas vezes no português? Sim. Bom… mais ou menos. Sempre haverá detalhes que se destacam mais na língua original do que em uma tradução. O hebraico nos ajuda a preparar um sermão porque, na hora da tradução, ele restringe aquela nossa capacidade de varrer detalhezinhos para debaixo do tapete.
- O hebraico revela a estrutura do texto. Nenhuma tradução que eu conheça consegue transmitir a estrutura de Lamentações. Os primeiros quatro capítulos do livro são escritos em forma acróstica, cada versículo começando com a próxima letra do alfabeto. Por quê? Porque Lamentações retrata a totalidade do sofrimento do povo de Deus, de A a Z, ou de א a ת. Como diz Cristopher Wright, o livro é “uma enciclopédia do sofrimento” (The Message of Lamentations, pág. 29). Ao mesmo tempo, parece o autor usa a forma acróstica para meditar de uma forma organizada sobre o caos que acabara de suceder. O ponto principal do livro, assim, parece ser a esperança do capítulo 3 (cf. v.24), no qual a forma acróstica é intensificada – temos ali um acróstico a cada linha, em vez de a cada três linhas, como nos capítulos 1, 2 e 4. Porém, no capítulo 5, esse controle e organização desmoronam, e a fachada de estrutura é fragmentada. Assim, mesmo que o capítulo 5 tenha 22 versículos, a forma acróstica não continua, e a súplica pela lembrança de Deus termina de forma ainda mais intensa, mais bruta: “Por que nos rejeitarias totalmente? Por que te enfurecerias sobremaneira contra nós outros?” Esse exemplo claramente mostra como o hebraico pode revelar a estrutura do texto, porque o texto é um poema e poemas são notóriamente difíceis de traduzir. Mas até narrativas e outros textos possuem uma estrutura mais evidente na língua original. Veja os vídeos de Jonas para observar como certas considerações sintáticas e gramaticais do hebraico podem iluminar a estrutura do texto.
- E, por falar em sintaxe, a gramática e sintaxe do hebraico expressam nuances que não podem ser traduzidas para o português. Um exemplo disso é o uso retórico da conjugação perfeita para expressar uma ação futura como já completa. … Quê?? Permita-me explicar com um exemplo mais concreto: a versão Almeida Revista e Atualizada (ARA) traduz Isaías 5.13 como “portanto, o meu povo será levado cativo, por falta de entendimento”, que é uma boa tradução para o texto hebraico, que diz “לָכֵן גָּלָה עַמִּי מִבְּלִי־דָעַת”. Note, porém, que o verbo “ser levado cativo” é um verbo perfeito no hebraico: גָּלָה. O verbo perfeito (ou “qatal”) no hebraico expressa uma ação completa. Assim, ele é normalmente utilizado para expressar ações no passado (ex: קָרָא / ele chamou; cf. Gn 1.5), um estado de ser (ex: רָעוּ / são maus; cf. Jr 11.16), ou ações atemporais, também chamadas gnômicas (ex: יָבֵשׁ / seca-se; cf. Is 40.7). Mas em Isaías 5.13, o verbo perfeito גָּלָה expressa uma ação futura. Não pensamos em ações futuras como ações completas, já que ainda não ocorreram, mas esse tipo de coisa é comum nos profetas, que mostram a certeza dos seus oráculos com um uso raro do verbo perfeito. É inviável (e provavelmente impossível) traduzir esse tipo de coisa para o português, mas certamente é algo que queremos transmitir no sermão. Mesmo sem explicar as nuances do verbo hebraico nos poucos minutos que temos em frente à congregação, podemos falar da certeza absoluta do castigo de Deus contra aqueles que ignoram sua bondade por causa da prática da idolatria.
- O hebraico tem termos que não são traduzíveis. Lembra quando você aprendeu que a palavra אָב significava “pai”, mas depois te disseram que poderia também significar “avô” ou “antepassado”? Pois é! A palavra אָב tem o que chamamos de “campo semântico” mais abrangente do que a palavra “pai” em português. Ela pode significar mais coisas do que o vocábulo normalmente utilizado na tradução. O fato é que existem certos campos semânticos que são utilizados em algumas línguas mas são inexistentes em outras! Por exemplo, John Lyons nota que a palavra Hindi pila pode ser traduzida por “amarelo”, “laranja”, ou até, em alguns casos, “marrom”. Da mesma forma, o verbo עָמַד (“ficar/colocar-se/endireitar-se, etc. de pé”) não é diretamente traduzível para o português, e isso faz com que, por exemplo, o substantivo derivado desse verbo, עֹמֶד (mais ou menos “lugar de se ficar em pé”) também não faça muito sentido em português. Assim, a tradução de Neemias 8.7 acima perde um pouco do sentido em relação ao original (traduzi apenas como “lugar”). Isso não quer dizer que as traduções estejam erradas mas que, mesmo quando uma tradução está correta, ela não transmitirá todo o sentido que, às vezes, pode ficar mais claro com uma frase pequena na hora de expor um versículo que contenha uma palavra assim. Estudos de palavras no hebraico podem também ajudar a expressar importantes categorias teológicas. Falta-me espaço para elaborar mais sobre isso, mas veja, por exemplo, o uso da palavra צוּר, começando em Êxodo 17.6, utilizada também em 33.21 (significando penha ou rocha), mas utilizada de outra forma em Deuteronômio 32.4, 13, 15, 18, 30-31 e 37 (para falar de Deus como nossa Rocha). É interessante e importante, então, que essa mesma palavra é utilizada das duas formas em Salmo 78.15, 20, 35, no qual o salmista reconta a firmeza de Deus apesar da inconstância e desobediência de Israel em Meribá (Êx. 17.6).
- Mas tome muito cuidado! Todos os pontos acima estão sujeitos às infames falácias exegéticas! Refiro-me ao excelente livro de D. A. Carson, que, embora seja dedicado quase inteiramente a perigos exegéticos no estudo do NT, contém várias listas do que evitar ao fazer qualquer estudo da linguagem original das Escrituras.
- Assim, temos uma responsabilidade enorme de estudar as línguas originais de tal forma a não deturpar a Palavra de Deus. Use toda e qualquer ferramenta à sua disposição para continuar estudando e aperfeiçoando seu conhecimento do grego e hebraico para ser fiel à Palavra de Deus. Se você estiver procurando um curso para iniciantes, recomendo o CLAJ do Centro de Pós-Graduação Andrew Jumper. Espero, através do Isso é Hebraico, ajudar aqueles que querem refrescar sua memória ou continuar estudando o hebraico. Veja também o Isso é Grego, do prof. João Paulo.
- Finalmente, quero lembrar que, a cada instante dos nossos estudos, devemos rogar ao Autor das Santas Escrituras que Ele abra os nossos olhos e que Ele desvende o mistério do evangelho através de cada i e til* da Bíblia.
*Aliás, a expressão “i e til”, em Mateus 5.18, provavelmente se refere ao yod (י) e a um traço, por exemplo, que distingue um resh (ר) de um dalet (ד) ou um het (ח) de um tav (ת). Eis aí mais um uso do hebraico na hora de ilustrar um ponto no sermão ou estudo bíblico!
Que texto maravilhoso..Estou acompanhando todos os post..além do isso é hebraico
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