Gramática em foco: contrastes de בִּנְיָנִים em 2 Cr 20.20 e Is 7.9

E aí? O que você chama essa raíz aí embaixo? Macaxeira? Aipim? Mandioca? E esses são só os nomes brasileiros! Em certos lugares da América do Sul chamam de yuca. Já em países de fala inglesa, chamam de cassava. Palavras são importantes, mas às vezes encontramos vários nomes diferentes para a mesma coisa, e é necessário saber sobre o que estamos falando…

Quer saber o que a mandioca, Optimus Prime, e o hebraico tem a ver um com o outro? Leia abaixo!

Nomes e definições iniciais…

Hoje quero falar sobre uma coisa que é chamado por vários nomes: grau (nas gramáticas de Mendes e Gusso), padrão (Futato), ou tronco (Rocine). Existem várias formas de se referir a essa parte do verbo hebraico, mas vou usar a palavra hebraica no post de hoje, que é בִּנְיָן (binyan), que significa “construção” ou “estrutura”. Existem sete principais בִּנְיָנִים do verbo hebraico: Qal, Nifal, Piel, Pual, Hifil, Hofal, e Hitpael, que geralmente descrevemos da seguinte forma:

  • Qal: ação simples e ativa
  • Nifal: ação simples e passiva ou reflexiva
  • Piel: ação intensiva e ativa
  • Pual: ação intensiva e passiva
  • Hifil: ação causativa e ativa
  • Hofal: ação causativa e passiva
  • Hitpael: ação intensiva e reflexiva

Problemas com as definições iniciais de בִּנְיָנִים

Essa explicação é boa e simples, mas qualquer pessoa que já passou algum tempo lendo mais do que algumas frases hebraicas preparadas especialmente para alunos do primeiro ano saberá que essa explicação não é apenas simples – ela é simplística. Veja só alguns exemplos de verbos que não se encaixam nas explicações acima:

  • O nifal (ação simples e passiva ou reflexiva)
    • Mas e לחם?
      • O verbo לחם aparece 171 vezes na Bíblia hebraica. Dessas 171 vezes, apenas 4 são no qal (Sl 35.1 [2x]; 56.2, 3), e significa “lutar” ou “brigar”.
      • Contudo, o uso predominante do verbo no nifal não é uma versão passiva ou reflexiva de “lutar, brigar”! Em outras palavras, o verbo não significa “brigar consigo” ou “ser brigado” (que, aliás, não faz sentido!), mas significa:
        • pelejar/fazer guerra – “Eia, usemos de astúcia para com ele, para que não se multiplique, e seja o caso que, vindo guerra, ele se ajunte com os nossos inimigos, peleje (‎וְנִלְחַם) contra nós e saia da terra.” (Êx 1.10)
        • atacar – “Ajuntaram-se todos de comum acordo para virem atacar (‎לְהִלָּחֵם) Jerusalém e suscitar confusão ali.” (Ne 4.8)
      • Em outras palavras, a palavra parece ter um sentido ativo, não é?
    • Mas e שׁבע ,ראה, e נבא?
      • ראה é “ver” no qal, mas “aparecer” no nifal. Não deveria ser “ser visto” ou “se ver”?
      • שׁבע não aparece no qal, é “causar alguém a jurar” no hifil, mas “jurar” no nifal. Mas “jurar” não é ativo?
      • נבא só aparece no nifal e hitpael, בִּנְיָנִים que não deveriam ser ativos. Contudo, seu significado em ambos בִּנְיָנִים é “profetizar”. Mas isso não é um significado ativo?
  • O hifil (ação causativa e ativa)
    • Mas e נטה ,כרת, e אמן?
      • כרת é “cortar” no qal, mas “exterminar” no hifil. Isso não seria intensivo?
      • נטה é “estender” ou “esticar” no qal, mas pode ser usado (a) com o mesmo sentido no hifil (e.g. 2 Sm 21.20, Is 31.3, Jr 6.12) ou (b) para significar “perverter” (e.g. Dt 16.19) ou “levar/conduzir para o lado” (e.g. Nm 23.22, Ml 3.5). No primeiro caso, não existe nenhuma distinção de uma ação simples, e no segundo, fica difícil ver como “perverter” é o mesmo que “causar a estender”…
      • Quanto a אמן, vamos dar uma olhada mais profunda daqui a pouco…

De qualquer forma, espero que deu para ver que a língua hebraica não é tão simples quanto parece no início. Embora as definições acima podem nos servir de guia inicial, os בִּנְיָנִים não se contêm em suas linhas bonitinhas e organizadas… É necessário buscar uma definição com maior precisão linguística, ou pelo menos uma compreensão melhor dos בִּנְיָנִים, para que não tentemos enfiar um verbo numa definição que não o descreve.

Nomes e definições ajustados

Se existe um problema em nossas definições, esse problema só é agravado quando olhamos para a literatura atual quanto à delineação dos limites de cada בִּנְיָן. Existe um debate nada pequeno – será que o nifal é passivo-reflexivo, resultativo, ou médio-passivo? Será que o piel é intensivo, ativo “complexo”, resultativo, ou pluralitivo-factitivo? Será que o hifil é causativo, causativo-factitivo, causativo-elativo, ou expressa dinâmicas de força? Será que o hitpael é reflexivo, intensivo, resultativo, inversativo, ou médio? Quais dessas categorias verbais melhor abrangem os בִּנְיָנִים?

*Se você (1) não entendeu metade dos termos no parágrafo acima ou (2) quiser saber mais sobre o debate contemporâneo acerca dos בִּנְיָנִים, recomendo muito a leitura de Advances in the Study of Biblical Hebrew and Aramaic: New Insights for Reading the Old Testament, de Benjamin J. Noonan, principalmente o capítulo 4.

Como mostrei exemplos estranhos no nifal e hifil acima, grau não será a melhor palavra para se referir aos בִּנְיָנִים, uma vez que grau tem noções de gradação, isso é, aumento ou diminuição. Mesmo se tomarmos a descrição tradicional dos verbos como ponto de partida, embora grau seja uma definição adequada para mostrar a diferença entre, por exemplo, o qal e o piel, o termo não explica bem a conexão entre o qal e o hifil, entre os quais não existe gradação. Contudo, o que eu acho bom do termo grau é que ele denota a existência de uma condição semântica na troca de בִּנְיָנִים. Assim, quando eu troco a palavra “casa” de grau (casinha, casão), eu mudo algo no seu significado. Portanto, veja só a seguinte definição do que os בִּנְיָנִים fazem:

Os binyanim são transformadores semânticos que produzem mudança sintática.

Steven W. Boyd, “The Binyanim (Verbal Stems),” págs. 88-89 em Where shall wisdom be found? A grammatical Tribute to Professor Stephen A. Kaufman.

[Aliás, se você tiver interesse em aprender mais sobre o assunto e conseguir acesso, recomendo e muito o artigo do Boyd]

Vamos explorar essa definição:

1. transformador semântico

Mas o que isso significa? O que é um transformador semântico? É…. não… não é bem isso aí ao lado não…
Um transformador semântico significa que o בִּנְיָן derivado mudará a forma em que entendemos a semântica – o significado básico – do verbo. E certamente בִּנְיָנִים os fazem isso!

2. produz mudança sintática

[Também não estamos falando desse tipo de mudança!] O que acho mais interessante da proposta de Boyd é que os בִּנְיָנִים não estão relacionados apenas ao verbo em si, mas também a toda a oração verbal. Dessa forma, de acordo com ele, cada בִּנְיָן trabalha não só o significado do verbo, mas como esse verbo se relacionará com o restante da oração, isso é, se ele será transitivo ou intransitivo, e se transitivo, quantos objetos ou complementos terá.

Creio que essa definição pode nos ajudar a entender melhor o que são os בִּנְיָנִים hebraicos e, para dar um pequeno e curto exemplo da significância dessa definição diferente, quero demonstrar com dois exemplos do verbo אמן.

בִּנְיָנִים contrastados em 2 Cr 20.20 e Is 7.9

Em geral, é pelos casos mais estranhos que acabamos compreendendo os limites do normal. Assim, para nos ajudar compreender melhor os dois בִּנְיָנִים exemplificados acima (nifal e hifil), quero trazer à nossa atenção dois exemplos de um trocadilho na Bíblia.

2 Crônicas 20.20b

וַיֹּאמֶר שְׁמָעוּנִי יְהוּדָה וְיֹשְׁבֵי יְרוּשָׁלִַם הַאֲמִינוּ בַּיהוָה אֱלֹהֵיכֶם וְתֵאָמֵנוּ הַאֲמִינוּ בִנְבִיאָיו וְהַצְלִיחוּ

e disse: Ouvi-me, ó Judá e vós, moradores de Jerusalém! Crede no SENHOR, vosso Deus, e estareis seguros; crede nos seus profetas e prosperareis (ARA)

Isaías 7.9b

‎אִם לֹא תַאֲמִינוּ כִּי לֹא תֵאָמֵנוּ

se o não crerdes, certamente, não permanecereis (ARA)

Em ambos os textos, os locutores presumiram que seus ouvintes perceberiam que a mesma raíz é utilizada para significar coisas completamente diferentes, contudo relacionadas. Nossas traduções não conseguem fazer jus a essa relação, mas talvez uma melhor compreensão do בִּנְיָן verbal possa ser de auxílio.

Se tomarmos a definição do Boyd como partida, poderemos ver que realmente, o hifil (vermelho) é semanticamente distinto do nifal (verde). Mas qual é o significado básico do tronco? Normalmente, para descobrir isso, precisaríamos olhar para essa raíz no tronco qal. Contudo, descobriremos que o verbo אמן no qal é outro verbo completamente diferente, um homônimo que não tem relação semântica nenhuma com o verbo אמן no nifal ou hifil. Portanto, o que resta é notar que esse verbo somente aparece nesses dois troncos na Bíblia hebraica.

Quando isso acontece, alguns gramáticos já notaram que o nifal transforma o significado do hifil, como se o hifil fosse o significado básico, em vez do qal (veja, por exemplo, van der Merwe, Naudé and Kroeze, p. 78). Mas a forma em que essa transformação ocorre muda a transitividade do verbo e seu relacionamento sintático com os elementos da oração.

Assim, nos exemplos acima, o verbo hifil הַאֲמִינוּ (e תַאֲמִינוּ) significa “crer”. Mas note que em 2 Cr 20.20, o verbo é transitivo e, em Is 7.9, temos também um objeto implícito: Acaz deveria crer na palavra de Deus por Isaías (a tradução ARA até faz esse objeto explícito ao adicionar o pronome “o”). Portanto, o verbo no hifil é ativo e transitivo.

Contudo, o verbo no nifal é intransitivo, mas não podemos dizer com toda certeza que ele é passivo. Mas se não é ativo e não é passivo, o que é esse verbo? Mais uma vez, o artigo de Boyd nos ajuda. Ele explica que o nifal não é passivo, mas principalmente um verbo médio que, em certos casos, pode ser, por extensão, passivo. Assim, como a raíz אמן é de um verbo atélico de estado de ser transitivo (i.e. “crer” = um verbo que expressa um estado do sujeito sem fim previsto e que demanda um objeto), a transformação prevista pelo tronco nifal é de colocar o sujeito num estado incoativo (i.e. inicial ou inceptivo) em referência à forma passiva do verbo simples. Como assim? Bom, em nosso caso, o tronco nifal 1) remove a transitividade do verbo no hifil, 2) enxerga a ação do ponto de vista que ela não havia acontecido ainda, e 3) faz com que o sujeito entre no estado da ação já realizada.

hifil
הֶאֱמִין = “ele crê em ___, confia em ___”

nifal
נֶאֱמָן* = “ele permanece, está seguro” (= ele entra num estado de possuir confiabilidade)
[* = forma não atestada na Bíblia]

Dessa forma, vemos que realmente, o nifal nem sempre expressa passividade, embora possa fazê-lo quando o ingresso num estado de uma ação já realizada é melhor entendido como o estado passivo. O que isso significa para a interpretação dos dois textos acima é que existe um relacionamento entre a fé em Deus e sua palavra e a segurança daqueles que devem ter essa fé – ao depositar sua segurança em Deus, eles mesmos receberiam segurança.

Resumo dos בִּנְיָנִים:

Mal toquei a superfície da discussão sobre os בִּנְיָנִים, mas espero ter mostrado a vocês que podemos sim explicar aqueles verbos inexplicáveis da língua hebraica. Isso não significa que tudo caberá 100% certinho na nossa caixinha de definições, mas que existem modelos diferentes e melhores para explicar a língua que tanto queremos entender. Esses modelos têm valor exegético também, como espero ter demonstrado com 2 Cr 20.20 e Is 7.9. Assim, por enquanto, fico por aqui e deixo com vocês segurança de que existe sim uma forma correta de chamar a mandioca! Ou, no caso dos בִּנְיָנִים, podemos pelo menos provisoriamente ficar com a definição de Boyd: “Os binyanim são transformadores semânticos que produzem mudança sintática”, ou…

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Gramática em foco é uma nova série de posts que estou criando. Nelas, destaco e explico uma parte da gramática hebraica e a exemplifico com um exemplo textual. Se tiverem perguntas sobre algum elemento da gramática hebraica, escrevam abaixo nos comentários. Aceito sugestões!

5 comentários sobre “Gramática em foco: contrastes de בִּנְיָנִים em 2 Cr 20.20 e Is 7.9

  1. Excelente!
    Poderia por favor fazer um post, do tipo “mapa da mina” para quem está começando a estudar hebraico!
    Explico: Mapa da Mina – um post bem simples, mas com um passo a passo:
    1º Passo: Alfabetização (livro tal…)
    2º Passo: Gramática tal… e gramática tal…
    3º Passo: Livro tal…
    4º Passo: Livro tal…
    Entendeu… um guia simples, mas que seria um caminho seguro para se chegar ao nível acima do seu excelente artigo, ajudaria muito quem está começando a não pegar atalhos, se perda nas trilhas, e desanimado desistir. Se percorrer um caminho que alguém (você) já trilhou… Obrigado de coração! Sucesso!

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  2. Cleiton Ricardo

    Excelente post Danillo.

    Desde as primeiras leituras que ficava me questionando sobre isso, até pensava com relação a alguns textos: “ou os tradutores erraram feio ou aprendi errado”.

    Vi algo em algum léxico que apontada para o significado de um verbo específico em cada “tronco”, será que existiria algo como um dicionário de binyanim? Ou não seria possível devido ao contexto sintático?

    Curtido por 1 pessoa

    1. Então, Cleiton, não existe um dicionário de binyanim, mas eles sempre estão inclusos nos léxicos normais que usamos. O problema em ter uma só obra que tenta explicar o que são os significados, de forma bem detalhada, dos binyanim, é que: 1) não temos informações (= textos de hebraico clássico) suficientes para estudá-los, 2) mesmo se tivéssemos, línguas mudam, e não seria fácil definir com perfeita precisão o significado de cada binyan, 3) mesmo assim, haveriam divergências, como hoje existem, entre os estudiosos da língua quanto às classificações.

      Curtido por 1 pessoa

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