Incongruência na Bíblia? Êxodo 6.3 e o nome de Deus

Nosso post hoje tem uma inclinação apologética. Sempre existem e sempre existirão perguntas que os cristãos devem responder tanto para sanar suas próprias dúvidas quanto para defender sua fé diante daqueles que a confrontam. A pergunta que responderei hoje diz respeito a possíveis incongruências na Bíblia. Ela veio a mim indiretamente por um muçulmano que queria demonstrar que a Bíblia não é inspirada.

Vejam a pergunta e resposta abaixo:

Jefferson Bible

Página 65 da Bíblia de Thomas Jefferson. Ele extraía palavras e versículos que considerava incorretos (inclusive referências ao sobrenatural, milagres, a ressureição, etc).

O argumento contra a Bíblia

O argumento é o seguinte:

  • A Bíblia não pode ser inspirada por Deus, pois existem vários erros bem evidentes nela.
    • Por exemplo, em Êxodo 6.3, a Bíblia diz o seguinte: “Apareci a Abraão, a Isaque e a Jacó como Deus Todo-Poderoso; mas pelo meu nome, O SENHOR, não lhes fui conhecido.”
    • Contudo, isso contraria o texto de Gênesis 22.14, onde vemos o seguinte: “E pôs Abraão por nome àquele lugar — O SENHOR Proverá. Daí dizer-se até ao dia de hoje: No monte do SENHOR se proverá.”
  • Se a Bíblia é incongruente nessas pequenas coisas, como podemos confiar nas afirmações mais importantes?

Pois bem, nesse post vou responder essa pergunta e esse argumento. Creio que existem três problemas fundamentais a serem abordados: um problema lógico, um problema semântico, e um problema moral. Como nosso blog é de hebraico, vou focalizar no segundo, mas precisamos tratar dos três para dar uma resposta completa a esse argumento.

1) O problema lógico

Em primeiro lugar temos um problema lógico, que supõe que esse erro existe na Bíblia. A Bíblia é um livro que, se não foi composto por um homem inspirado por Deus (Moisés), foi composto ao longo dos anos por vários escribas e estudiosos que queriam convencer o povo da veracidade da religião judaica. O tetragrama (יהוה – traduzido acima como SENHOR) aparece 165 vezes em Gênesis. É meio ingênuo pensar que o autor humano do Pentateuco, seja Moisés (o que eu afirmo) ou seja um grupo de editores ao longo da história de Israel, não saberia que o nome יהוה já tinha sido expresso tantas vezes antes em Gênesis.

O problema é que essa teoria então é altamente improvável e não suporta a navalha de Occam. É como se eu notasse que o pãozinho de sal da minha padaria veio um pouco mais escuro. Em vez de assumir que o pão ficou no forno por um tempinho a mais ou que eles começaram a usar farinha integral, eu imediatamente acuso o padeiro de trocar parte do sal por açúcar, que caramelizou. É possível? Sim. Provável? Nem que a vaca tussa!

2) O problema semântico

Assim, partamos da suposição que o autor de Êxodo não era um incompetente. Desse modo, o erro não é da Bíblia, mas do intérprete. O autor bíblico quis dizer algo diferente do que entendemos ali. Portanto, não devemos supor que Êxodo 6.3 está falando que Deus não havia revelado o tetragrama anteriormente, ou que o nome יהוה nunca havia sido pronunciado pelos patriarcas. “Pelo meu nome, O SENHOR, não lhes fui conhecido”, então, deve significar outra coisa além da pronúncia sonora de um substantivo próprio.

No caso, uma pesquisa da raíz verbal ידע com o nome יְהוָה em certas instâncias revela vários textos nos quais o conhecimento do SENHOR é mais do que a habilidade de pronunciar seu nome. Vejam abaixo alguns deles (parei de contar depois de Ezequiel 20!):

  • Textos nos quais Deus diz “saberás (ידע) que eu sou o SENHOR (יְהוָה)” por causa do juízo que ele trará – Êxodo 7.5, 17; 10.2; 14.4, 18; 16.12; Ezequiel 5.13; 6.7, 10, 13-14; 7.4, 27; 11.10, 12; 12.15-16, 20; 13.9, 14, 21, 23; 14.8, 15.7; 17.21, 24; 20.26, 38
  • Textos nos quais Deus diz “saberás (ידע) que eu sou o SENHOR (יְהוָה)” em contextos de bênção e salvação – Êxodo 29.46; 31.13; Deuteronômio 4.35, 29.6 (29.5 MT), 1 Reis 20.13, 28; Isaías 49.23, 26 (que também demonstra o juízo de Deus contra os inimigos de Israel); Ezequiel 16.62; 20.12, 20, 42, 44

O que esses textos demonstram é que o verbo “conhecer” (ידע) demonstra um relacionamento mais íntimo do que apenas cognição de um aspecto de Deus. É importante então ver que Deus diz que ele seria conhecido por seu povo (ou pelos gentios) através das suas obras de salvação ou juízo, e até mesmo pelas suas leis (especialmente o sábado – Êxodo 31.13; Ezequiel 20.12, 20).

Adicionalmente, podemos ver três outros textos que confirmam esse uso do “nome” de Deus em Êxodo 6.3:

  • Isaías 52.6: “Por isso, o meu povo saberá (יֵדַע) o meu nome (שְׁמִי); portanto, naquele dia, saberá que sou eu quem fala: Eis-me aqui.” – Esse texto fala sobre a salvação que Deus trará a Israel “naquele dia” – isso é, o dia do novo êxodo. Assim, o conhecimento do nome de Deus é equivalente ao conhecimento do seu poder salvífico.
  • Jeremias 16.21: “Portanto, eis que lhes farei conhecer, desta vez lhes farei conhecer a minha força e o meu poder; e saberão (וְיָדְעוּ) que o meu nome (שְׁמִי) é SENHOR (יְהוָה).” – O poder de Deus tanto em retribuir o pecado de Israel quanto em salvá-lo a despeito desse pecado (v. 18) é maior mesmo do que o poder que ele demonstrou no êxodo (vs. 14-15), mas ele o descreve da mesma maneira que em Êxodo 6.3 – “saberão que o meu nome é SENHOR”
  • Ezequiel 36.23: “Vindicarei a santidade do meu grande nome (‎שְׁמִי), que foi profanado entre as nações, o qual profanastes no meio delas; as nações saberão (‎וְיָדְעוּ) que eu sou o SENHOR (‎יְהוָה), diz o SENHOR (‎יְהוִה) Deus, quando eu vindicar a minha santidade perante elas.” – Depois de uma longa seção na qual Ezequiel transmite a preocupação que Deus tem com seu nome (36.16-21), ele promete fazer algo inédito – não só retornar seu povo a Israel num novo êxodo, mas colocar seu Espírito neles (36.26-27). Dessa forma não só Israel mas todas as nações ao redor conhecerão o nome de Deus.

Voltemos então ao contexto de Êxodo 6.3 – porque Deus diz que ele não se fez conhecido pelo nome יְהוָה aos patriarcas? Notem que no v. 1 do capítulo, Deus promete que livrará seu povo – “Agora, verás o que hei de fazer a Faraó; pois, por mão poderosa, os deixará ir e, por mão poderosa, os lançará fora da sua terra.” Assim, creio que Êxodo 6.3 está dizendo que Deus se deu a conhecer a Abraão e aos patriarcas, mas nunca da forma que será revelada através do evento do êxodo.

Como prova disso, vejam só a importância do verbo יָדַע no contexto:

  • Em Êxodo 5.2, Faraó zomba de Deus e diz, “Quem é o SENHOR para que lhe ouça eu a voz e deixe ir a Israel? Não conheço (‎לֹא יָדַעְתִּי) o SENHOR, nem tampouco deixarei ir a Israel.” Assim, o inimigo do povo de Deus desconhece seu nome.
  • Já em Êxodo 6.3, Deus diz que nem os patriarcas de Israel o conheceram da maneira como ele se revelará. Portanto, através do evento do êxodo, “Tomar-vos-ei por meu povo e serei vosso Deus; e sabereis (‎וִידַעְתֶּם) que eu sou o SENHOR, vosso Deus, que vos tiro de debaixo das cargas do Egito” (6.7; veja 7.5).
  • Assim, na primeira praga contra o Egito, Deus se apresenta a Faraó da seguinte forma: “Nisto saberás (‎תֵּדַע) que eu sou o SENHOR: com este bordão que tenho na mão ferirei as águas do rio, e se tornarão em sangue.”
  • Esse refrão é repetido ao longo das dez pragas e culmina no “conhecimento” de quem é o SENHOR quando o povo de Israel cruza o mar vermelho (14.4, 18).

Portanto, todo o evento do êxodo foi o palco no qual o nome de Deus se tornou conhecido, tanto ao seu próprio povo quanto àqueles que ameaçavam destruí-los. Levando todo esse contexto em consideração, é inconcebível que Êxodo 6.3 fizesse uma afirmação tão simplística e errônea como afirmam os oponentes da inspiração das Escrituras.

3) O problema moral

Porém, no final das contas, o maior problema do argumento acima é que ele parte da presuposição de que a Bíblia não somente não é a palavra de Deus, mas também é um livro cheio de falsidades. Claro que não devemos esperar algo diferente de um descrente, mas é aqui que podemos e devemos começar nossa conversa com nossos amigos descrentes. Devemos notar que eles não praticam a hermenêutica de amor, como Agostinho de Hipona nos diz: “Quem, então, pensa que entende as Santas Escrituras, ou qualquer parte delas, mas impõe tal interpretação nelas que não intenta edificar esse amor duplo de Deus e do próximo, não as entende” (De Doctrina Christiana 1.36.40 Latim Inglês).

Sem amor por Deus e amor pelo próximo, é impossível entender as Escrituras. Ao conversar com esse tipo de pessoa, devemos começar por aqui, pelo coração. “Meu amigo, será que você não está tentando destruir a veracidade da Bíblia porque você ja está convencido que ela está errada? Porque não dar a ela o benefício da dúvida? Trate-a em primeiro lugar com respeito, e poderemos assim sanar suas dúvidas ao longo de um estudo bíblico…”

Aliás, se queremos demonstrar amor por Deus e pelo próximo ao ler a Bíblia, porque não aprender hebraico? Ou se você já está aprendendo hebraico e se sente entediado ou cansado, lembre-se disso: você está demonstrando amor pelo Criador ao ler sua palavra na língua em que Ele a autorizou! É claro que podemos amar a Deus também ao ler a Bíblia numa tradução (Agostinho mesmo nunca aprendeu hebraico), mas se tivermos o tempo e os recursos (espero oferecer alguns deles aqui no Isso é Hebraico!), façamos do nosso aprendizado do hebraico uma verdadeira devoção a Deus!


O post de hoje toca em assuntos que já foram abordados em certos posts anteriores. Alguns dos assuntos mais relevantes incluem meus posts sobre o nome de Deus (1 2a 2b), semântica, e buscas morfológicas. Se você tiver outra dúvida, use a barra de pesquisa à direita.

Aliás, se você tiver alguma pergunta como essa que respondi no post hoje, entre em contato comigo. Talvez até me dê uma boa ideia para escrever um post (tô precisando!).

2 comentários sobre “Incongruência na Bíblia? Êxodo 6.3 e o nome de Deus

  1. douglas sousa

    Provérbios 4. 7: a sabedoria é a cousa principal: adquire pois a sabedoria; sim , com tudo o que possuis adquire conhecimento. Que grande bênção é temos acesso ao estudo do hebraico! !

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