Você já leu Os Lusíadas? Eu mesmo não sei se li toda a epopeia, mas me lembro de ler um pouco da obra quando estava no ensino médio e de me perguntar, “isso é português?!” Veja só duas estrofes da segunda edição do texto de 1572 na foto abaixo:

É claro que grande parte da dificuldade de se compreender o texto é porque ele foi escrito em uma forma poética, seguindo certo esquema de métrica e rima, etc. Contudo, a dificuldade de se compreender esse texto não é somente de gênero literário, mas também linguístico – o português de 1572 não é o mesmo de 2017. A escrita é diferente (por exemplo, não escrevemos “uma” mais como “hũa”), a gramática também foi alterada em certos aspectos, e até certos vocábulos foram adicionados e outros removidos do “banco de dados” do português. E isso em pouco menos de 450 anos de história da língua.
Imagina então a dificuldade de compreender e explicar a história de uma língua que possui, no mínimo, 3000 anos! Pois é isso mesmo que tentarei fazer neste e nos próximos posts sobre a história do hebraico bíblico. Vamos lá?
Iniciaremos nossa jornada na vastidão obscura do Antigo Oriente Médio, uma terra de culturas poderosas e remotas, que nos cederam verdadeiros tesouros arqueológicos, como os zigurates, as esfinges e as pirâmides, porém, teremos que fazer isso sem um guia de ajuda ou manual do usuário. Muito do nosso conhecimento da história dessas civilizações parece um trapo velho:
- sujo e feio – a história da arqueologia está cheia de tragédias de povos ou indivíduos que quiseram lucrar – ou impedir alguém de lucrar – com a destruição ou perda de artefatos de valores inestimáveis.
- cheio de buracos – existem verdadeiras lacunas no nosso conhecimento de antigos povos, como veremos no resto do post de hoje.
- remendado – muito do que chamamos de “ciência” ou “história” não é nada mais que uma reconstrução baseada não somente nas informações disponíveis, mas também em conjeturas e hipóteses de arqueólogos e linguistas que nos precedem.

Contudo, esses pontos não impedem que continuemos a investigar e tentar decifrar as pistas e vestígios do passado; afinal, mesmo um trapo velho pode ser usado para limpar o chão, não é? Apenas lembre-se que muito do que vou dizer no post hoje é assunto de debates e discussões intermináveis no meio acadêmico.
A Origem da Escrita
De acordo com os arqueólogos, o início da escrita veio através do comércio. Aparentemente por volta de 4000 a.C., com a ascendência dos impérios mesopotâmicos e egípcios, as transações feitas precisavam ser recordadas de alguma forma. Esse tipo de escrita foi desenvolvido de formas diferentes em diferentes partes do mundo antigo:
- Pictogramas – esse tipo de escrita é o mais antigo (5000 anos atrás), encontrado em Uruk (não tem nada a ver com os soldados Uruk-hai do Senhor dos Anéis!).
Nesse tipo de escrita, cada imagem é um ícone para representar um objeto. Utilizamos pictogramas até o dia de hoje, mas é difícil comunicar ideias abstratas e verbais através de pictogramas.
- Logossilabários – a escrita acadiana/suméria (mais ou menos 5000-4000 anos atrás) tinha tanto logogramas (marcas que representavam uma única palavra) quanto silabários (marcas que representavam sílabas). Por ser escrito com cunhas, esse tipo de escrita é chamado de cuneiforme. Esse tipo de escrita já não existe (a não ser para imortalizar tweets!), mas foi um grande passo dado na história da escrita.
- Hieróglifos – os hieróglifos egípcios eram utilizados de três formas diferentes: 1)
logogramas, 2) escrita silabária/consonantal, e 3) determinativos, isto é, sinais que diferenciavam terminações de palavras; por exemplo, a palavra “parar”, escrita somente com consoantes, não pode ser distinguida de “pararei” ou “aparar”. Um determinativo ajuda a diferenciar essas palavras.
- Escrita consonantal – encontramos evidências de uma escrita proto-cananéia por volta de 1800 a.C. que era essencialmente uma escrita consonantal. Isso se torna evidente com uma abundância maior de achados arqueológicos que datam por cerca de 1100 a.C. na escrita fenícia, uma escrita adotada pelo povo hebraico. A escrita aramaica, que aprendemos nas nossas vídeo-aulas, foi adotada pelos judeus apenas durante o tempo do exílio à Babilônia. Veja só como a escrita fenícia compara com a escrita aramaica, grega e latim à esquerda.
O Desenvolvimento das Matres Lectionis
Não sabemos exatamente quando, mas vários historiadores linguísticos creem que os judeus começaram a utilizar certas consoantes (ו ,י, e ה) para distinguir palavras umas das outras, as chamadas matres lectionis (mães da leitura). Em outras palavras, eram determinativos, mas determinativos vocálicos, o que faz uma grande diferença em que eles representavam o som das palavras de uma maneira até então inédita na história da escrita. Por exemplo, a palavra דִּבְרֵי (“palavras”; um substantivo masculino plural no estado construto), a palavra דָּבָר (“palavra”; um substantivo masculino singular no estado absoluto) e a palavra דְּבָרוֹ (“sua palavra”; um substantivo masculino singular absoluto com sufixo da terceira pessoa masculina singular) todas seriam escritas da mesma maneira: דבר! Imagine só a confusão para alguém que estava aprendendo a ler! Somente os escribas que haviam estudado como escrever e até memorizado certas porções de texto saberiam decifrar tal ambiguidade. Porém, com o advento das matres lectionis, o poder da leitura foi difundido a toda a população. Portanto, essa distinção não foi meramente uma diferenciação entre palavras, mas foi a primeira vez na história humana que sons vocálicos foram utilizados na escrita – uma verdadeira revolução!
Contudo, essa revolução não veio do acaso… Pára um momento para pensar: o mundo antigo descobriu a escrita milênios antes de “descobrir” a escrita das vogais. Será que devemos atribuir uma razão evolucionista a isso? “Bom, o que acontece aqui é que o homo sapiens estava desenvolvendo pouco a pouco, e não tinha faculdades para pensar em como criar formas escritas de sons vocálicos.” Acho que seria uma tolice dizer que pessoas que conseguiram erguer pirâmides e zigurates não tinham capacidade mental para pensar em vogais, não é? Ao invés disso, muitos estudiosos dizem que é mais fácil acreditar que a elite de escribas não quis largar mão de seu poder. Se a única forma de realmente aprender a ler era de se tornar um escriba, de dedicar horas e horas lendo, relendo, decifrando ambiguidades, memorizando textos, etc., apenas uma minoria que não precisaria trabalhar para sua subsistência, isso é, uma minoria rica e poderosa, conseguiria ler.
Mas se é esse o caso, por que os judeus foram os primeiros a utilizar vogais na sua escrita? Por que criaram um forma de escrever e ler para todos? A resposta está em um texto que leio frequentemente com meus filhos:
Ouve, Israel, o SENHOR, nosso Deus, é o único SENHOR. Amarás, pois, o SENHOR, teu Deus, de todo o teu coração, de toda a tua alma e de toda a tua força. Estas palavras que, hoje, te ordeno estarão no teu coração; tu as inculcarás a teus filhos, e delas falarás assentado em tua casa, e andando pelo caminho, e ao deitar-te, e ao levantar-te. Também as atarás como sinal na tua mão, e te serão por frontal entre os olhos. E as escreverás nos umbrais de tua casa e nas tuas portas. (Deuteronômio 6.4-9)
Toda a nação de Israel era responsável por ouvir, guardar, e até mesmo escrever a palavra de Deus. Deus mandou que o amassem por meio de guardar sua palavra, e a melhor maneira de fazer isso era de memorizá-la, de ensiná-la e de recordá-la para gerações futuras.
O amor por Deus e sua lei mudou o curso da história da humanidade. Espero que tenhamos o mesmo zelo e paixão para continuar a revolucionar o mundo e os corações daqueles a quem o amor por Deus e sua palavra nos envia!
Esse post faz parte de uma série sobre a história do hebraico bíblico. Veja abaixo outros posts na série:
- A História do Hebraico Bíblico: como o hebraico revolucionou a história da escrita
- A História do Hebraico Bíblico: podemos confiar na cronologia bíblica?
- Mais em breve!
Não sabia que as Matres Lectiones foram as primeiras representações vocálicas da história. Excelente texto, Danilo!
Ansioso por ler as próximas partes.
Abraço
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