Meus amigos e minha família sabem que tenho um gosto para música um tanto quanto… peculiar. Para os propósitos deste post, uma música em particular me vem à mente – Ya Hey, do álbum Modern Vampires of the City (em minha defesa, esse álbum ganhou um Grammy em 2014!). A canção e na verdade todo o álbum diz respeito às dúvidas em se acreditar em Deus. O tom da música é agnóstico com tendências ateístas, mas mesmo assim, o cantor toma os “devidos cuidados”, como se dissesse, “se Deus existe mesmo, não quero que ele me castigue por minha blasfêmia”. Um exemplo disso é que ele toma cuidado em dizer “Ya Hey” em vez de dizer “Yahweh”, que seria uma pronúncia do nome de Deus e possivelmente uma quebra do terceiro mandamento.

Mas afinal de contas, de onde vem essa pronúncia – “Yahweh” – e por que não vemos esse nome de Deus nas nossas bíblias?
Qual é a pronúncia correta?
Certamente, você já ouviu alguém dizer que o nome correto de Deus é Jeová, Javé, Iavé ou qualquer outra variação do mesmo. Mas o nome acima (Yahweh) é pronunciado como se fosse “Iarrué”, o que parece bem diferente de Jeová, não? Por que existem tantas variações diferentes?

Para responder essa pergunta, precisamos começar pela história da transmissão do texto hebraico. Lembre-se, em primeiro lugar, que a Bíblia hebraica foi originalmente escrita com o alfabeto fenício (veja a foto acima), e que apenas as consoantes eram registradas na escrita, não as vogais. Isso não é um problema para o hebraico, visto que até mesmo o hebraico moderno hoje em dia no estado de Israel não contém vogais na sua escrita – quem já sabe a língua não precisa ver todas as vogais para decifrar o texto.
De qualquer forma, com o passar dos anos, a religião judaica começou a ficar um pouco mais guardada, um pouco mais legalista – para se protegerem de quebrar a lei de Deus, os judeus criaram outras leis, como uma “cerca” em volta das leis já prescritas no AT. Uma dessas leis que servia de cerca foi a de que não se deveria pronunciar o nome de Deus nunca, para assim nunca pronunciá-lo em vão. Assim, mais ou menos nos séculos 2 ou 3 a.C., os judeus decidiram substituir a pronúncia correta do nome de Deus por “Adonai” (“Senhor” – אֲדֹנָי).
Cabe-nos ressaltar aqui a transmissão do texto do AT… Permita-me fazer uma pergunta: se uma língua escrita somente pode ser decifrada por aqueles que a conhecem na fala, isto é, aqueles que sabem inserir as vogais apropriadas entre as consoantes marcadas na escrita, o que acontece quando uma palavra já não é mais pronunciada na fala? Isso mesmo, a pronúncia do nome de Deus, com suas vogais e tudo, foi descontinuada e perdida no olvido dos séculos. Hoje, temos apenas as consoantes do nome de Deus: יהוה, as quatro letras transcritas YHWH, as quais também são chamadas de Tetragrama. [Aliás, o termo “tetragrama” pode ser traduzido como “(um nome de) quatro letras”, já que, em grego, “tetra” = 4; e “grama” = letras. Contudo, a palavra se tornou um termo técnico para se referir exclusivamente ao nome de Deus em hebraico.]
Todavia, o leitor astuto notará que nossas Bíblias em hebraico não contêm o nome de Deus apenas com as consoantes, mas que existem sim vogais no texto hebraico. Se o que eu acabei de dizer é verdade, porque isso ocorre, e o que são essas vogais no nosso texto massorético?
Mas de onde então vem Jeová e outras pronúncias?
Os massoretas (clique aqui para aprender um pouco mais sobre os acentos dos massoretas), ao escrever o nome santo de Deus, mantiveram a tradição judaica que os precedia de pronunciar “Adonai” em vez de “YHWH”. Assim, por exemplo, vemos o nome יְהֹוָה (YeHoWaH) em Êxodo 3.2 no texto massorético. As vogais que aparecem nesse nome não apontam para a pronúncia do nome de Deus, mas são sobrepostas nas consoantes יהוה. Eles faziam isso como lembrete de que deveriam ler “Adonai”. Isso é o que chamamos uma escrita “Qere”, ou “lida”. Veja a explicação de como isso acontece abaixo:
As vogais de Adonai são (da direita à esquerda): 1) hateph patach, 2) holem, 3) qamets. As vogais de YeHoWaH são: 1) sheva, 2) holem, 3) qamets. O fato de que vemos um sheva em vez de um hateph patach na primeira consoante é porque o hateph patach é apenas um substituto para um sheva na palavra Adonai, que começa com um א, uma letra gutural (lembre-se que letras guturais não conseguem suportar o sheva vocal, mas preferem o hateph patach!).

Algum tempo no século 15, cristãos começaram a ler essa pronúncia (YeHoVaH) como o nome de Deus. Só que essa pronúncia, em alemão, é escrita Jehowah. Parece que William Tyndale popularizou o nome Jehovah em inglês, e em português nós o transliteramos como Jeová, omitindo o “h”.
Quais são as vogais originais?

Existem várias outras variações do nome de Deus nos escritos massoréticos, mas são todas escritas Qere; isso é, para leitura, que não revelam a pronúncia do nome de Deus.
Embora provavelmente nunca saberemos com certeza (deste lado da eternidade!) quais eram as vogais de YHWH, muitos acadêmicos sugerem que o nome era originalmente escrito יַהְוֶה – Yahweh. As razões para essa vocalização são as seguintes:
- Clemente de Alexandria (150-215 d.C.), na sua obra Stromata 5:6, diz que o nome de Deus para os judeus era ̓Ιαουε (Iaoué).
- Alguns manuscritos da Septuaginta (tradução grega do AT feita por judeus no século 2-3 a.C.) traduzem o nome de Deus como ̓Ιαβε (Iabé).
- A vogal inicial provavelmente era patach, já que temos vários casos do nome “abreviado” de Deus יָהּ (yah). Por exemplo, “aleluia” vem de הַלְלוּ־יָהּ (= piel imperativo de הלל, seguido por יָהּ): “adore Yah(weh)”.
- Essa combinação de vogais parece combinar com os nomes teofóricos (nomes que contêm o nome de Deus embutido) que vemos no AT.
O que significa o Tetragrama?
Ninguém sabe! Estudos que tentam descobrir o significado do Tetragrama são chamados de estudos filológicos, isso é, estudos que tentam fazer uma espécie de arqueologia semântica, escavando e tentando reconstruir o passado através de pequenos cacos de dicas linguísticas aqui e ali. O problema com esses estudos é que não existem muitas pistas, e as que existem são ambíguas! Veja abaixo algumas das soluções propostas:
- Alguns propoem que o nome vem da raíz הוה, que pode significar “destruir” no Hifil (veja o Qal em Jó 37.6, que significa “cair”). Essa explicação caberia se o verbo fosse um imperfeito Hifil, dizendo assim que originalmente Deus era o Deus que destruía todos seus inimigos. Pessoalmente, não acho que essa seja uma boa explicação. O nome de Deus aqui não bate com sua autodescrição no AT. É claro que Deus destrói, mas ele é principalmente o Criador, aquele que fez e sustenta toda a vida, não é?
- A raíz הוח também é utilizada para falar de um desejo, uma paixão. Vemos em Miquéias 7.3 um exemplo disso, onde o profeta diz “o grande fala dos desejos de sua alma”. O problema é que, mais uma vez, essa raíz parece ter uma conotação negativa – desejos maus (cf. Provérbios 10.3, 11.6).
- Outras teorias apelam para o ugarítico hwt, que significa “palavra”, e na forma verbal, “falar”. É interessante que Deus é conhecido pela sua palavra, e que a Bíblia começa com a criação de Deus pela sua palavra. Porém, essas teorias voltam à antiga cidade de Ugarit, que ficava bem ao norte de Israel durante o tempo da conquista de Israel e dos juízes, e o nome de Deus já era utilizado pelo povo de Israel bem antes dos anos 1200 a.C., de acordo com a Bíblia.
- Outra teoria popular é que o nome vem de uma forma antiga de היה, a forma הוה. Assim, o nome de Deus teria sua raiz no verbo “ser” ou “se tornar”. Essa raiz é atestada, por exemplo, em Gênesis 27.29, no qual Isaque abençoa Jacó e diz, “sê (הֱוֵה) senhor de teus irmãos”. No Hifil imperfeito, esse nome significaria “ele cria” ou “ele faz existir”, o que cabe muito bem com duas coisas:
- o fato de que Deus é o Criador
- Êxodo 3.14, texto que estudaremos no próximo post.
Você provavelmente notou que eu concordo mais com a última opção que qualquer outra, mas mesmo assim, não posso dizer com toda certeza que é isso o que significa o nome de Deus. Existem tantas variáveis, tantas dúvidas e ambiguidades, que afirmar essa última teoria exclusivamente parece-me um tanto orgulhoso ou pretencioso.
Embora esse tipo de estudo possa ser valioso, acho melhor submeter nossos estudos etimológicos incertos ao conhecimento certo de Deus pela sua revelação na sua Palavra.
Este post é o primeiro de uma série sobre o nome de Deus. Clique abaixo para ver os demais na mesma série:
- Qual é o Nome de Deus? (parte 2a) – nesse post falo sobre como entender e traduzir a expressão “Eu Sou Quem Eu Sou” em Êxodo 3.14.
- Qual é o Nome de Deus? (parte 2b) – nesse post exploro a interação da expressão de Êxodo 3.14 com o Tetragrama (que aparece em Êxodo 3.15).
- [em breve!] Qual é o Nome de Deus? (parte 3) – nesse post damos uma olhada na auto-proclamação do nome de Deus a Moisés em Êxodo 34.6-7.
Excelente texto! Muito esclarecedor e equilibrado. Sempre tive dúvidas sobre estes sinais massoréticos no Tetragrama. Mas agora, foram muito bem sanadas.
Obrigado, Danilo!
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Ótimo Silvio! Que bom que o post foi útil!
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Danilo,
Para nós Brasileiros que queremos estudar o hebraico Bíblico, sempre nos deparamos com sse posicionamento dos Judeus de não pronunciarem o nome do Eterno. esse post nos traz uma clareza maravilhosa.
Que o Eterno te Abençoe sempre!
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BOM DEMAIS E PERFUNDA A EXPLICAÇÃO.,MUITO GRATO..
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Embora não tenha entendido tudo por não ter familiaridade com hebraico hebraico, mas entendi a essência do texto!! Muito bom parabéns, amei .
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